“Somente a partir de dentro que se é capaz de entender qual é o problema das big techs”, constata o jornalista e pensador bielorrusso Evgeny Morozov. Com estas palavras, o autor também respondeu a meu questionamento sobre o fato de ter enveredado pelo formato podcast com a produção da série “Santiago Boys”, pendurada em grande parte nas big techs agregadoras e players de áudio. Morozov é autor, entre outros, de Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política (Editora Ubu, 2018), no qual faz uma crítica inexorável às big techs do Vale do Silício e ao neoliberalismo.
A produção refinada envolvendo os meandros da tecnologia política histórica “The Santiago Boys” é um exemplo de quando o Estado investe (ou tenta investir) em uma infraestrutura digital, naquilo que o jornalista chama de alternativas de futuros possíveis com a defesa da inovação tecnológica não mercadológica. A partir daí, Morozov conta a história da tentativa do governo do chileno socialista Salvador Allende (1970-1973) de construir, com um grupo de engenheiros utópicos e radicais – os Santiago Boys –, uma espécie de internet antes da internet, uma rede digital livre do controle das empresas norte-americanas e de seus acionistas, uma internet socialista e pública em uma economia igualitária. Não deu. Todos sabem do golpe sangrento de Pinochet pondo fim ao governo Allende.
Em visita ao Brasil, no encontro de pesquisadores na Escola do Futuro, da USP, quarta-feira, dia 30 de agosto de 2023, Morozov responde à minha pergunta sobre o podcast e o motivo pelo qual ele o acolheu como mídia. “De certa forma, é quase um exercício de poesia ou drama” e, especialmente, de como convencer as pessoas de que esse desenvolvimentismo alternativo (público, inclusive) – de que tanto fala dentro do leque da soberania tecnológica para diminuir assimetrias de dependência – é possível. O jornalista entende que “é preciso ir além do cognitivo, da mentalidade totalmente cognitiva e racionalista com a qual estamos lidando, do neoliberalismo, porque o aparato ideológico hegemônico do neoliberalismo é tão forte que eles têm um excesso de argumentos”. Morozov acredita que o neoliberalismo produziu argumentos suficientes para “manter seus críticos esquerdistas debaixo d’água pelos próximos 30 anos”.
De acordo com o raciocínio do autor, não se pode “nadar para fora do mar de falsidades”, que provavelmente não foram usadas por think tanks neoliberais facilmente. O motivo, segundo Morozov: muitos desses argumentos também foram incorporados em um grau mais ordinário de nossas vivências e reforçados pelas mesmas plataformas digitais. É o que nos leva a algumas de suas críticas atuais ao neoliberalismo: “Muito disso acontece no nível de compreensão de como se influencia a vida cotidiana e os aspectos fenomenológicos dela”.
Foi então que Morozov pensou: “Era disso que precisávamos […] você precisa trabalhar em uma escala diferente para atingir um público diferente”. Há muitas pessoas que precisam ser convencidas e não se pode convencê-las facilmente com argumentos sofisticados sobre alternativas. É necessário um argumento que atraia um público muito mais amplo, enfatiza. O jornalista, então, conclui ser preciso “deixar de escrever ensaios sofisticados para os novos produtos de esquerda e tentar uma maneira diferente. Para mim, esse podcast é apenas o começo”.
Portanto, o podcast é um bom ponto de partida para Morozov porque permite contar uma história dramática e, ao mesmo tempo, colocar materiais (históricos, políticos) extras suficientes, além de discutir alguns temas que permanecerão relevantes nos próximos anos. Há uma parte da transmissão em que Morozov fala sobre a dificuldade de envolver trabalhadores no processo de planejamento e gestão de grandes empresas nacionais. “Continuaremos com esse dilema por séculos. Isso não vai desaparecer em lugar nenhum”, frisa. “Mas, para mim, foi uma maneira de tentar operar em uma linguagem dramática que potencialmente abriria a porta para a realização de um filme. E, por fim, transformar isso em um filme ou série é mesmo o próximo passo, além do podcast”, completa o jornalista.
Dessa forma, Morozov pretende atingir um público muito maior. Em suas próprias palavras: “Você pode se comunicar muito melhor em termos de mitologia. Porque acho que, a essa altura, não é apenas o fato dos neoliberais usarem um conjunto de argumentos muito melhor”. Morozov afirma que temos que lidar com eles – os neoliberais – e aceitá-los. “Eles também conseguiram produzir uma mitologia muito poderosa. Existe uma mitologia de que os ‘Chicago Boys’ fazem milagres econômicos e as pessoas continuam acreditando que isso é realmente um milagre de algum tipo”, reflete o autor. Morozov quer dizer, assim, que é uma mitologia, mas uma mitologia muito convincente. Portanto, para ele, é uma questão de exercitar uma contramitologia de algum tipo. Mas fazê-lo de uma forma com a qual as pessoas comuns possam se identificar, motivadas pela lógica do drama e com personagens envolvidos – e envolventes. Desse modo, as pessoas podem “se identificar com o drama e a tragédia de uma forma com que você não consegue se relacionar com alvos abstratos”.
Morozov está conversando com produtoras de filmes e agentes de Hollywood – e isso explica, de certo modo, o que acontece, ao fazer essa produção circular nesse contexto capitalista em que requer a tomada de algumas decisões estranhas. Quando eu o questionei sobre estar em plataformas como Spotify, uma big tech de áudio, ele respondeu que “é claro que eu poderia ter alimentado todo o podcast em uma plataforma de software livre. Mas, se eu fizesse isso, eu não conseguiria convencer nenhuma das grandes empresas cinematográficas a aceitá-lo, porque tudo o que eles olham é o número de downloads do Spotify. Minha motivação é ter o maior número possível de pessoas ouvindo no Spotify, o que é perverso. No entanto, isso é menos perverso se vocês pensarem que o objetivo final será fazer um filme”.
Morozov sinaliza que têm alguns outros podcasts a caminho e está considerando uma trilogia – já está trabalhando em um segundo podcast agora e um terceiro é provável. O tema unificador entre eles são os escombros tecnológicos que falharam. O jornalista explica: “Mas não os escombros tecnológicos do tipo do Vale do Silício, nem as pessoas que são arrogantes e unidimensionais. Estou muito mais curioso por explorar pessoas que realmente assumiram os riscos de construir algo que poderia ter mudado o mundo e que foram esmagadas pelo sistema”. O autor dá o exemplo de Dylan: uma figura muito interessante e completamente desconhecida do mundo, ele ainda está vivo e tem 99 anos de idade. Morozov o descobriu há uma década e tem conversado e gravado suas conversas desde então: “O cara [Dylan], no final da década de 1960, desenvolveu uma abordagem alternativa à inteligência artificial, que poderia ter-nos proporcionado um universo muito diferente. Ele inspirou muitas pessoas no MIT. Nicholas Negroponte era seu jovem protegido. E, no início da metade da década de 1970, percebeu que não era possível construir essas visões alternativas no contexto do complexo militar-industrial dos EUA”, conta o jornalista.
Para Morozov, é interessante encontrar esses casos “antigos e ousados, personagens estranhos e exóticos e tentar contar suas histórias de vida de uma forma que possa inspirar a geração mais jovem a seguir esse caminho”. Afinal, Morozov vai muito além da crítica às gigantes da tecnologia e do transtorno causado à democracia mundial.
Ouça os nove episódios de uma hora cada do podcast “The Santiago Boys” e, para aguçar a experiência auditiva, veja as transcrições das mais de 200 entrevistas, dicas de leitura, recomendações de vídeos e muito mais no site. O podcast foi escrito, pesquisado, produzido e apresentado por Evgeny Morozov. O tema musical principal de “The Santiago Boys” foi composto por Luca Micheli e o trabalho é uma colaboração entre Chora Media e Post-Utopia.
Reportagem originalmente publicada no Jornal da USP, disponível aqui.
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Magaly Prado trabalha na Rádio USP. É coordenadora executiva da Cátedra Oscar Sala, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Fez estágio pós-doutoral na ECA/USP. Professora de Tecnologias Emergentes na Pós Digital Faap