No último dia 14 de março, jornalistas de Portugal fizeram a primeira greve geral da categoria em mais de 40 anos. A última paralisação desse porte no país lusitano foi em 1982. Agora, em 2024, o Sindicato dos Jornalistas conseguiu aprovar a greve por unanimidade, após assembleia realizada em janeiro, contando com uma expressiva adesão dos/as profissionais. De acordo com a entidade, pelo menos 36 veículos de imprensa interromperam o funcionamento a partir da meia-noite daquela quinta-feira, incluindo a agência de notícias Lusa, as rádios Antena 1 e TSF, além dos jornais centenários Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Pelo menos outras 12 empresas funcionaram parcialmente naquele dia –– caso das redações de Público e Expresso, que cobriram a paralisação.
Antes mesmo do “dia D”, redações viram a rotina mudar com a antecipação de fechamento de jornais, convites antecipados para gravações e trocas de turnos, apesar do alerta do Sindicato de que o empregador não poderia substituir funcionários em greve ou apelar a outros esquemas para limitar os impactos da paralisação. Ainda assim, centenas de jornalistas participaram de protestos em algumas das principais cidades portuguesas, como Lisboa, Porto e Coimbra, com o apoio de trabalhadores de outros setores. Também houve adesão de correspondentes internacionais em Madri, Paris e Rio de Janeiro, além de freelancers.
Algumas insatisfações dos colegas portugueses são bastante conhecidas dos jornalistas brasileiros: baixos salários, precariedade, degradação das condições de trabalho e insegurança. Entre os onze pontos da pauta reivindicatória, eles cobram, por exemplo, reposição salarial acima da inflação de 2022, pagamento de insalubridade e de horas extras, e denunciam que há estagiários recebendo 150 euros por mês e freelancers, 20 euros por artigo. Neste episódio do Podcast diário P24, do Público, seis profissionais relatam a situação que os levou a aderir à greve e explicam por que o movimento fortalece não apenas os jornalistas, mas toda a sociedade.
É claro que a greve não se desenhou da noite para o dia. Desde o ano passado, os jornalistas vêm se mobilizando depois da crise instaurada na gigante da comunicação portuguesa Global Media Group (GMG), que ameaçou demitir cerca de 200 funcionários, atrasou salários e teve de parcelar o pagamento do bônus de natal que deveria ter sido efetuado em dezembro. Vale dizer que, conforme noticiou o Poder 360, a GMG é dona de muitos dos mais importantes veículos de imprensa de Portugal – entre os quais alguns dos citados no início deste texto – e essas empresas estão na liderança da audiência no país, segundo agências especializadas.
A ameaça é geral
Quando nos referimos à realidade brasileira, que em vários aspectos é muito diferente da portuguesa, já estamos quase acostumados a associar precarização a jornalismo. Há algum tempo esse triste dado da profissão vem sendo tema de artigos, livros, teses e dissertações de investigadores brasileiros; tem ganhado destaque em relatórios de pesquisa e, não raro, é abordado em diversos textos publicados aqui mesmo no objETHOS, há anos ou só algumas semanas atrás. Mas não é privilégio nosso, nem de Portugal.
Também nos Estados Unidos o momento não é dos melhores. Em janeiro deste ano, foram demitidos de uma só vez 115 jornalistas do Los Angeles Times – dos quais 60 profissionais negros e jovens – e, além de todos os efeitos já sabidos de um “passaralho”, a situação levantou um debate sobre como os cortes podem afetar a diversidade das redações. Agora é a vez do The Boston Globe (GBH), um dos diários de maior circulação dos EUA, anunciar a possibilidade de demissões.
O que fazer diante de um cenário que, aparentemente, só se agrava e do qual os trabalhadores parecem reféns? Há quem desista da profissão, quem troque o fazer notícia por alternativas dentro do próprio campo da comunicação – embora isso não signifique estar livre da lógica perversa de exploração e insegurança laboral – e há quem siga no jornalismo, acreditando que a mobilização coletiva ainda é o caminho para garantir dignidade e, simultaneamente, bom jornalismo.
Segundo dados da última edição do Perfil do Jornalista Brasileiro (2021), pouco mais de 9% dos respondentes disseram que migraram para outras áreas. São pessoas que agora atuam como empresários, astrólogos, bombeiros ou com tecnologia, odontologia, direito, para citar alguns exemplos. Feito eu, certamente você deve conhecer alguém brilhante que, em algum momento após experimentar os reveses da precariedade a que chegamos, não viu futuro no jornalismo e foi buscar outros caminhos.
No caso daqueles que permanecem a bordo do imenso navio da comunicação, de acordo com a mesma pesquisa, 39% atuam majoritariamente com marketing, assessoria de imprensa ou de comunicação, publicidade, comunicação interna/corporativa, audiovisual e editoração. Também se destaca o número de pessoas que afirmam ser funcionário/servidor público.
Para os que seguem atuando como jornalistas no Brasil, ainda segundo o relatório, os dados não são animadores. Embora a maioria (45,8%) tenha como principal vínculo empregatício a carteira assinada (CLT), somente 40,1% dos respondentes recebem mensalmente o suficiente para arcar com as despesas do mês, enquanto para 23,9%, isso só é possível “às vezes”. Os pesquisadores do Perfil do Jornalista Brasileiro (2021) destacam o percentual de 36,1% que não conseguem pagar as contas com a renda mensal vinda do jornalismo.
No Brasil, todos os anos, os sindicatos de jornalistas país afora encampam campanhas salariais, vão às mesas de negociações com os patrões, tentam mobilizar os profissionais e, em alguns casos, até conseguem aprovar greves. Este ano, inclusive, tentando uma abordagem diferente, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) lançou uma Campanha Salarial Nacional Unificada, a fim de reforçar a unidade da categoria.
No entanto, apesar da absoluta importância da luta sindical, como podemos ver no exemplo português, os jornalistas brasileiros ainda se mantêm distantes da luta coletiva da categoria. O Perfil revela que 68,6% dos respondentes declararam não ter filiação a nenhum sindicato, contra 31,4% de respondentes com filiação sindical – acima da taxa nacional de sindicalização, que é de 11,2%, de acordo com dados do IBGE (2020). Entre as razões para o alto número de jornalistas não sindicalizados (entre os quais me incluo), chamam atenção a mera falta de interesse, o desconhecimento sobre o sindicato e a avaliação de que as diretorias não representam a categoria. Sejam quais forem os motivos, porém, diante de uma perspectiva tão desafiadora para os trabalhadores do jornalismo, talvez seja hora de rever o aparente conformismo ante a precarização e, coletivamente, também reagir.
Texto publicado originalmente em objETHOS
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Raphaelle Batista é jornalista, doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS