Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Homenageado da Flip 2024, o que João do Rio (ainda) tem a dizer aos jornalistas e escritores?

(Foto: FON-FON!: semanario illustrado. Rio de Janeiro, p. 11. 13 fev. 1909. Commons Wikimedia)

A Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), marcada para outubro, traz uma oportunidade especial para os jornalistas neste ano, além da tradicional e esperada aclamação da literatura como expressão artística e cultural. A decisão de ter João do Rio (1881-1921) como o homenageado do ano será um momento para relembrar vida e obra de um dos maiores repórteres brasileiros e repensar como o contato com seus feitos na imprensa e na literatura ainda têm muito a ensinar e inspirar. 

Filho de um professor branco e uma negra alforriada, João do Rio (que nasceu Paulo Barreto) viveu pouco: morreu menos de dois meses antes de completar 40 anos. Mas essas poucas décadas foram suficientes para que ele se tornasse um dos mais profícuos autores do início do século XX e, por esses e outros feitos, se tornasse o mais jovem autor eleito até hoje para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Esquecido atualmente em boa parte das bibliografias dos cursos superiores de Jornalismo, relegado quase sempre apenas à história da imprensa ou às aulas sobre Jornalismo Literário (já tão raras…), João do Rio, seja pelas características de sua obra, pelas polêmicas em que se envolveu ou pelo legado literário, é um nome a ser redescoberto. 

João foi, antes de tudo, um repórter, na acepção mais tradicional da função, algo que, ultimamente, tem se visto pouco nos veículos brasileiros. Como flâneur da Belle Époque carioca, sabia que só a observação dos hábitos, a conversa sincera e com menor julgamento possível, a entrevista e a curiosidade diante do insólito, do diferente ou do que foge ao esperado podem dar origem a uma reportagem em profundidade. Essa imersão na realidade é também a gênese de outra das grandes habilidades de João do Rio: o uso sensível e criativo da linguagem. Afinal, quem consegue escrever com profundidade sobre um assunto ou sobre alguém sem ter um contato próximo? Quem consegue ser criativo no tratamento das informações e das palavras, sem experimentar a liberdade fora de técnicas engessadas? 

Só se pode ser jornalista na rua, ora mais flâneur, ora menos, mas sempre olhando ao redor, conversando com os desconhecidos e, quem sabe, tendo a sorte de encontrar uma instigante história num papo que pode começar despretensioso. Foi assim, na mescla de hábitos brasileiros e europeus, que João conseguiu exercitar aquilo que, do outro lado do mundo, o russo Anton Tchékhov (1860-1904), na mesma época, dizia ser necessário a um bom jornalista: “um bom par de sapatos e um caderno de anotações”, enunciado que dá nome a um dos livros fundamentais sobre o ofício da reportagem.

João soube sujar os sapatos. Não quaisquer pares, é verdade, afinal ele queria ser dândi. Que fossem sapatos finos, à moda europeia, então. E, assim, foi o responsável não só por apresentar aos leitores do Rio de Janeiro muito do que estava nas ruas, só à espera de um grande contador de histórias. As reportagens, parte delas reunidas no livro “A alma encantadora das ruas” (1908), mostram um Rio de Janeiro que, até então, não era retratado nas páginas de jornais. 

Nesse aspecto, está também o conflito como fundamento essencial do jornalismo. Ainda que não tratasse explicitamente de contradições, ao reportar e narrar a vida de personagens até então invisibilizadas pelo Jornalismo – como estivadores, prostitutas, mascates, ex-escravizados, minorias religiosas e pessoas em situação de subempregos –, João expunha que as mudanças produzidas pelo prefeito Pereira Passos (1836-1913), na ânsia incontida para fazer uma Paris nas ruas do centro do Rio de Janeiro, não apagavam as desigualdades sociais. Pelo contrário, tornava-as ainda mais gritantes. Só por isso João do Rio já continua a levantar um questionamento: O que é o Jornalismo se não o ofício de mostrar o que os outros querem que permaneça escondido? 

Entre estética e ética: não é só a novidade que faz uma reportagem prosperar

João sabia também que reportagem se faz com novidade, seja na forma como o tema é abordado ou pela própria natureza substantiva do fato. A liberdade de culto só chegara havia muito pouco, com a Proclamação da República, em 1889, e João foi o responsável pela primeira cobertura jornalística sobre a diversidade religiosa no país, publicada na forma de série de reportagens em 1904, na Gazeta de Notícias, e logo na sequência convertida em livro. Com esse trabalho, o jornalista demonstrava que “o Rio […] tem em cada templo e em cada homem uma crença”, como escreveu logo na abertura.  

Era a primeira vez que os leitores viam abordadas temáticas como presbiterianismo, espiritismo, candomblé e satanismo. Além desse caráter de novidade, dessa obra se depreendem outras duas dimensões, que colocam João do Rio como vanguardista e com discussões pertinentes ao Jornalismo de hoje. 

A primeira delas é a criação de formatos (talvez, pudéssemos dizer “gênero”, mas essa é outra discussão…). Diante de toda grande mudança cultural, comportamental, tecnológica ou econômica, é exigido que jornalista seja inovador. Inovação, para a época, foi criar uma reportagem seriada, em episódios, que podiam ser lidos de forma individualiza ou em conjunto. Sim, estávamos diante do surgimento da série de reportagem que, mais de meio século depois, seria também praticada por outros veículos, como a TV, o rádio e a internet. Inovar, no jornalismo, não é só rompimento com tudo o que já se fez antes, mas ainda um esmerado aprofundamento do que já se fez e deu certo. 

A inovação, em João do Rio, foi também estética. No clássico “Notícia: um produto à venda”, Cremilda Medina trata do assunto nestes termos: “Quando o nariz-de-cera precisava de uma operação plástica urgente, João do Rio descobre a força narrativa de fatos reais em suas reportagens” (Medina, 1988, p. 59). E, mais que isso, “os tipos sociais observados representam a tendência de humanização” (p. 63). Se ainda hoje a ideia de humanização é recorrente, imagine o que isso significava em termos de inovação no início do século XX, quando crepitavam as ideias positivistas, que, a todo custo, queriam imputar objetividade a fatos e a abordagens, apagando tanto quanto possível as marcas de subjetividade. 

A segunda dimensão a destacar nessa experiência de João do Rio é que o jornalista sempre estará diante de embates. A melhor técnica e a estética mais apurada se anulam se não existirem as preocupações éticas. A um jornalismo que cada vez mais parece se basear em personagens “que não quiseram revelar o nome” ou na inexistência de fontes, João mostra que, por envolver questões de privacidade e relações de poder, a reportagem bem feita não há de agradar a todos. Em tempos de superexposição e de coberturas que transformam histórias de vida em espetáculos, a experiência de João mostra que é imprescindível estar atento aos efeitos que a abordagem de um tema pode trazer ou causar aos envolvidos. 

Durante a publicação da série sobre as religiões, o jornalista foi acusado de ser alcaguete, e fazer com que a polícia chegasse a templos que, embora permitidos pela lei, eram alvos de preconceito e intolerância. E a polícia não necessariamente chegava para garantir o direito de manifestação da fé, lembremos… Tudo se justifica pelo interesse (do) público?

E isso de se tornar jornalista? 

A obra de João do Rio ensina que, ao jornalista, é necessário conhecimento de mundo, de literatura, de artes, de história. Conhecendo a cultura francesa, ele se deparou com a cobertura jornalística que Le Figaro fizera das religiões parisienses. Era a motivação necessária para fazer o mesmo no Rio de Janeiro. Foi também entre os franceses que encontrou inspiração para seu pseudônimo. Enquanto nas rues, surgiu o Jean de Paris (1837-1906), as ruas cariocas conheceram João do Rio. 

Primeiro tradutor brasileiro de Oscar Wilde (1854-1900), João dominava francês, inglês, italiano e latim, idiomas nos quais legou cerca de 4,1 mil livros de sua biblioteca para o Real Gabinete Português de Leitura. Ao mesmo tempo que estava com o povo, ele frequentava assiduamente o Teatro Municipal e foi três vezes à Europa, onde esteve com grandes nomes da arte, como Isadora Duncan (1877-1927) e Sarah Bernhardt (1844-1924). Também por lá fez coberturas de conferências de paz ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Tudo isso em um mundo ainda longe da ideia de globalização e com as distâncias – sejam geográficas ou de acesso à informação – muito maiores, quase intransponíveis aos olhos de hoje. 

Nada deveria substituir, na formação integral do jornalista, o estudo sistemático e contínuo. João soube fazê-lo muito bem, inclusive, contribuindo para um debate teórico que persiste: as relações entre Jornalismo e Literatura, nem sempre amistosas; frequentemente colocadas como dicotômicas. Em 1905, ele publicou uma série de entrevistas com escritores e críticos literários, que foram inquiridos pelo seguinte questionamento: “O Jornalismo, especialmente, no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?”. A João do Rio, o diálogo entre esses dois discursos – o jornalístico e o literário – parece só ter feito muito bem! As 28 entrevistas, com nomes como Olavo Bilac, Graça Aranha e Coelho Neto, ganharam perenidade no livro “O Momento Literário”, de 1908. Com esse trabalho, de forma um tanto espontânea, mas com rigor metodológico, João tornava-se nosso primeiro pesquisador da área.   

De empreendedor a militante, um vanguardista (ainda hoje)

Numa época em que ainda não existiam os grandes veículos monopolizadores, João foi um empreendedor, responsável por criar diversos jornais, entre os quais A Pátria, que circulou entre 1920 e 1940. Temos aqui outro ponto polêmico do legado do jornalista. Vários veículos de comunicação e obras ficcionais que ele escreveu tinham o compromisso de se posicionar diante de questões que, ainda hoje, são alvo de inflamado reacionismo. 

Para acalorar as polêmicas entre ser um dândi, que queria viver conforme os hábitos da elite, e ter um olhar para os conflitos sociais, João mostrou que o Jornalismo pode ser também uma forma de luta social e política. Longe de qualquer discurso já desmitificado de objetividade ou imparcialidade, em 1920 ele usou o Jornalismo para publicar o manifesto de pescadores que ameaçavam greve, em função de legislação exigindo que metade da tripulação da Marinha fosse de brasileiros natos. Muito crítico ao governo de Epitácio Pessoa (1865-1942), recebeu constantes agressões verbais e físicas de militares, que o ofendiam em função de posições políticas, da cor, da orientação sexual. Não é que, aos olhos de hoje, muita coisa parece déjà-vu, para usar um termo que ele adoraria…?

Usando o prestígio literário e intelectual, João se posicionava sobre temas como eleição de mulheres para cargos públicos, o divórcio, o feminismo e a transexualidade. “O feminismo é a única ideia revolucionária bonita e sempre na moda (…)”, escreveu em artigo publicado no jornal A Notícia, de 16 de janeiro de 1908. No conto “O bebê de Tarlatana Rosa”, do mesmo ano, João criou diversas estratégias para driblar as marcações linguísticas e deixar em aberto a identidade de gênero da personagem. Primórdio de uma discussão sobre gênero neutro e linguagem inclusiva? Talvez seja muito afirmar; inovador e criativo, certamente. 

Com um tanto de biografia e outro de ficção – o que também não deixa de ser outra polêmica pensar em limites tão rígidos –, João contou a história de Dina Parâdeda, uma mulher trans brasileira, que se suicidara às vésperas do casamento, minutos antes de ser examinada por um médico. Em épocas em que o suicídio ainda não tinha ganhado o status de impublicável, o desfecho trágico da história de um dos primeiros casos documentados de transexualidade no Brasil foi publicado como uma sórdida curiosidade nos jornais do país e do Exterior em janeiro de 1907. Em sua versão, no conto “A condessa brasileira Didi”, João mostrava o quanto aquilo que se apresenta como ficção literária, pode ser o traço mais visível da realidade.

É o conjunto dessas dualidades, dessas reflexões e da atualidade de uma obra que já completou um século que fazem com que João do Rio tenha sido um nome tão bem escolhido para ser o homenageado pela Flip. Que o flanar pelas ruas de Paraty possa ser inspirador para os atuais desbravadores da realidade humana, seja no Jornalismo, na Literatura ou naquilo que cada um puder ser.

Referências

TCHÉKHOV, Anton. Um bom par de sapatos e um caderno de anotações: como fazer uma reportagem. São Paulo: Martins Fontes, 2019. 

MEDINA, Cremilda. Notícia: um produto à venda. São Paulo: Summus, 1988.

ORMANEZE, Fabiano. João, João do Rio. Campinas: Mostarda, 2024. 

ORMANEZE, Fabiano. Entre ser dândi, flâneur e militante, um carioca chamado João do Rio. Portal Multirão do Brasileirismo Comunicacional. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista, 2016. Disponível em: http://portal.metodista.br/mutirao-do-brasileirismo/cartografia/verbetes/america-do-sul/joao-do-rio-2. Acesso em: 14 jul. 2024. 

RIO, João do. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1976. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7617Acesso em: 14 jul. 2024.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.

RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1908. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/1977. Acesso em: 14 jul. 2024. 

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Fabiano Ormaneze é jornalista, escritor e professor universitário. É professor-permanente do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor do Centro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta). Doutor em Linguística pela Unicamp. Escreveu as biografias de João do Rio para a série “Brasileirismo” (2016) e para a coleção “Black Power”, da Editora Mostarda (2024).