A participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na reunião do G7 – o grupo dos sete países mais ricos do planeta, realizada em Hiroshima (Japão), nos últimos dias 20 e 21 de maio, cujo foco era meio ambiente e combate às mudanças climáticas, produziu um conjunto empírico de dados que nos permite uma boa reflexão sobre a relação do jornalismo com a ideologia. A presença do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky impôs o debate sobre a guerra provocada pela invasão russa à Ucrânia, há mais de um ano. Nosso foco aqui será a profusão de manchetes sobre uma notícia que se destacou dos debates gerais da cúpula: a reunião que não aconteceu entre os dois líderes políticos.
Em uma obra publicada em 2019, antes da pandemia da Covid-19, o jornalista e pesquisador Eugênio Bucci, indagava, no título: “Existe democracia sem verdade factual?”. O autor aponta uma hipótese bastante plausível, notadamente a partir dos eventos de 2016 – o plebiscito Brexit, no Reino Unido, e a eleição de Donald Trump, nos EUA, à base de fake news, desinformação e corrupção da opinião pública – de que as democracias mais estáveis do planeta estariam ingressando numa era em que os relatos sobre os acontecimentos perderam referência na verdade factual (ou “verdade de facto”, como ele escreve). Neste cenário, que se espalha em escala global sob a base do oligopólio formado pelas plataformas digitais (redes “sociais”), a imprensa hegemônica ainda mantém uma parcela do poder de sensibilizar corações e mentes. Interpretando o autor, eu diria que o uso da mentira (pós-verdade é um eufemismo barato) como estratégia de poder cria e fortalece um regime de crenças na sociedade, no “qual os fatos objetivos têm menos peso do que apelos emocionais ou crenças no jogo da formação da opinião individual (e pública)”.
O caso do não encontro entre Lula e Zelensky é um singelo exemplo dessa intensa e ininterrupta disputa pela hegemonia das ideias na sociedade, vista aqui apenas pelas lentes dos principais players da mídia hegemônica brasileira. Talvez esta análise pudesse ser mais completa se fosse possível agregar os dados empíricos dos posts dessas empresas jornalísticas nas plataformas digitais. Mas, veremos a seguir alguns exemplos de um jogo, em geral – salvo algumas exceções – marcado fortemente pelo viés ideológico. Às favas o jornalismo, suas regras deontológicas, suas promessas seculares – entre as quais se destaca o primado da verdade factual.
Verdade factual e democracia
A ida do líder ucraniano à reunião do G7 (formado por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) tinha um objetivo simples e direto: obter apoio do Sul Global – países supostamente “em desenvolvimento -, ali representados pelo Brasil, Índia, Indonésia e Vietnã. Aqui, nas telas da mídia corporativa, as manchetes foram da confirmação prévia da reunião, passando pelo suposto “isolamento” de Lula – numa tentativa grotesca de comparação com um certo ex-presidente aficionado por joias árabes – chegando ao extremo da escolha do verbo “fugir”.
No dia 20 de maio, primeiro dia da cúpula mundial, a Folha de S. Paulo cravou:
Em outra interpretação bem distinta, o jornal O Globo afirmou no mesmo dia:
A CNN Brasil, que também dava como certa o encontro entre os dois Chefes de Estado, noticiou:
Na disputa da hegemonia sobre este não-acontecimento, a Jovem Pan destacou:
Correndo por fora, mas na linha ainda de expor Lula ao desgaste da reunião frustrada, o Portal G1 apostou em Zelensky:
Enquanto isso, o Portal UOL, preferiu a sobriedade de uma declaração direta da fonte primária de mais relevância, pelo critério de proximidade:
Nesse noticiário contaminado pela ideologia, o site jornalístico Poder360, no limite da ficção – viés não acompanhado por nenhum de seus pares – tratou assim o fato:
Contudo, foi no portal de notícias do Estadão de S. Paulo que a geopolítica aparecia com mais nitidez, considerando que o discurso do presidente Lula foi centrado na busca da paz, e não no apoio unilateral à Zelensky – que teria a simbologia de um “sim à guerra” de parte do Sul Global.
Jogando, por fim, na posição da extrema-direita, sem nenhum apego à verdade factual, mas de olhos nos “likes” e excitação de seu público preferencial, o jornal Gazeta do Povo escrachou, uma semana depois da realização da reunião do G7:
Jornalismo e ideologia
A construção frasal, espelho da linguagem jornalística, explicita sem rodeios as escolhas ideológicas que ditaram as notícias sobre esse não-acontecimento “Lula & Zelensky”. Lula fica isolado, enquanto Zelensky é “tietado” por líderes mundiais (sic); o líder ucraniano teria ignorado a presença de Lula ao agradecer apoios obtidos na cúpula em Hiroshima; e fechando o enredo, o qualificativo “fujão” implícito na opção do verbo “fugir” usado por um destacado porta-voz da extrema-direita no país.
Finalizo recorrendo a dois saudosos gigantes da pesquisa em jornalismo, no Brasil. Quando o jornalista e pesquisador Adelmo Genro Filho propôs que o jornalismo fosse concebido como forma social de conhecimento, sustentou sua análise em três eixos que legitimavam essa nova forma de representar a realidade:
a) a necessidade social da informação jornalística;
b) a estrutura da notícia em relação com e na realidade;
c) a relação entre jornalismo e ideologia.
Escreveu Genro Filho em sua obra lapidar:
Dito de outro modo, mesmo reconhecendo a presença das dimensões objetivas (fluxo do real) e subjetiva (percepção do ser humano que produz a notícia), o autor nos adverte para um limite posto pela realidade objetiva, sem o qual deixamos de fazer jornalismo e ingressamos no campo da ficção ou do discurso ideológico direto.
Colocando Genro Filho em diálogo com o saudoso professor e pesquisador Nilson Lage, podemos acrescentar à luz desse breve exame do caso “Lula & Zelensky”, o que ele nos legou sobre o conceito de verdade aplicado ao jornalismo: a adequação entre o enunciado (narrativa jornalística) e os fatos ou como ele escreveu “‘acordo íntimo entre a coisa e a inteligência’ (adaequatio rei et intellectus)”. No último artigo científico que publicou, em julho de 2020, o autor atualizou esse conceito plenamente aplicável nesta análise: “Constata-se, por aí, que a verdade não existe na natureza, mas no discurso, como obra da percepção humana e da linguagem. Fomos formados pelo senso comum e pela escola no culto dessa verdade objetiva de que fala (Isaac) Israeli, resistente à metafísica – conformação do relato a fatos empiricamente verificados ou deduzidos de evidências” (LAGE, 2020, p. 204-205, grifos meus).
Sob o intenso jogo ideológico que pautou a cobertura da reunião do G7, o discurso do presidente do Brasil em defesa da paz mundial, de um processo de negociação para o fim do conflito Rússia-Ucrânia, restou secundarizado sob a grossa camada de ideologia que embala o noticiário cotidiano, especialmente quando se trata da cobertura do governo Lula e sua projeção internacional. E aqui, vale ressaltar ainda o entendimento lapidar de ideologia que nos legou o filósofo italiano Antonio Gramsci: “A ideologia é mais do que um sistema de ideias, ela também está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e proporcionar orientação para a ação” (GRAMSCI, 1971, apud BOTTOMORE, 2001, p. 186; grifos meus).
Referências
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BUCCI, Eugênio. Existe democracia sem verdade factual? Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2019.
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2012.
LAGE, Nilson. No grau zero de um mundo futurista ou de um passado tenebroso. In PEREIRA, Fábio Henrique.; ROCHA, Paula Melani; GROHMANN, Rafael; LIMA, Samuel P. Novos olhares sobre o trabalho no jornalismo brasileiro. Florianópolis: Insular, 2020.
Reportagem publicada originalmente no objETHOS.
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Samuel Pantoja Lima é Professor do PPGJor/UFSC e pesquisador do objETHOS