
(Foto: Elad/Pixabay)
Outro dia, dirigindo nas sempre congestionadas ruas e avenidas da Ilha de Santa Catarina, com o rádio ligado numa estação musical, dei-me conta que as informações ali difundidas eram todas produzidas e pagas pelas entidades interessadas. Tanto aquelas que desde sempre chamamos de “propaganda”, anúncios comerciais de produtos e serviços, quanto aquelas que tínhamos nos acostumado, anos atrás, a ouvir como informação jornalística.
O governo do estado publica (produz e compra o espaço de veiculação) vários programetes, de um minuto ou menos, com o que acha que deve ser difundido. Da mesma forma, a Prefeitura Municipal, a Assembleia Legislativa, a Câmara dos Vereadores, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público… e esta lista não está completa. Nas longas horas em que estive ao volante, com o rádio ligado, nenhuma informação jornalística strictu sensu, nenhuma informação que não tivesse sido produzida e paga pelos interessados. E, para efeito deste comentário, se a pessoa, a empresa ou entidade, pública ou privada, comprou espaço e pagou para que o material fosse divulgado da forma como produzido, não importa o conteúdo, a importância ou relevância da informação: não se considera jornalismo.
Sim, ainda existem emissoras que têm departamentos de Jornalismo, que difundem informações sobre fatos e pessoas sem que o departamento comercial tenha emitido algum boleto ou recebido pix. Mas gosto de imaginar (como otimista que sou) que seja cada vez mais comum encontrar ouvintes e leitores que percebem as intenções e compromissos desse serviço público: “com tanto anúncio da Prefeitura é claro que o noticiário sempre será favorável ao prefeito”.
Dependendo do caso, essa crítica é injusta e, dependendo do caso, é apenas uma constatação óbvia. Por que o diretor ou a diretora de um veículo de comunicação colocaria em risco o bom relacionamento com qualquer das fontes (cada vez mais raras) dos recursos necessários ao financiamento e manutenção do departamento de Jornalismo?
Os velhos jornalistas ranzinzas até podem resmungar que isso é coisa nova, dessa gurizada mal formada. Mas a verdade é que o Jornalismo sempre se equilibrou no fio de uma espada, ou dançou à beira da caçarola, com risco de cair no fogo ou no óleo fervente. “A história dos Meios de Comunicação no Brasil é parte da história da dependência econômica, política e cultural da sociedade brasileira” já dizia Daniel Herz num dos primeiros trabalhos que ele apresentou no início do Mestrado em Comunicação na Universidade de Brasília, no longínquo ano de 1979 (século passado, em que já se discutia tanta coisa que hoje tem gente apresentando como novidade).
Tem sido comum, nas rodas de jornalistas (cada vez mais raras e cada vez com menos participantes), circular a informação que o fulano, ou a beltrana, foram “dispensados” do veículo. Normalmente os motivos giravam em torno de corte de gastos, reestruturação, compra, venda, bancarrota ou só maluquice de algum novo chefe. Mas, de uns tempos para cá, pelo menos neste estado do Sul do Brasil, tem surgido um motivo adicional: “o prefeito não gosta dele, pediu-lhe a cabeça”. E o dono ou gestor do veículo só se preocupa, nesses casos, se a bandeja em que a cabeça será servida está adequada: “Precisa mesmo ser prata, não pode ser inox?”
Mesmo essa coisa não é nova. O Daniel Herz, naquele artigo que já citei (de 1979, lembram?), lembrava que o regime ditatorial instalado por Vargas com o Estado Novo a partir de 1937, criou dois órgãos, o DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda e o DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. “Através de ambos, os jornalistas souberam que não bastava calar-se, ou não falar mal do ditador, mas que era preciso falar bem. A censura, a tortura, o fechamento de jornais, a apreensão de jornais, o confisco e a corrupção, através da distribuição de verbas de propaganda pelo DIP tornaram-se, a partir daí, familiares à imprensa brasileira”.
Pois então, quando um colega ou uma colega, que sempre escreveu crônicas e reportagens aparentemente inofensivas (no sentido de não ofender as autoridades), for dispensado/a “a pedido”, é provável que o motivo tenha sido aquele: não falou bem o suficiente. Ou, não participou da campanha, assumida, velada ou abertamente pelo veículo, de transformar a autoridade num influencer queridinho das multidões, no inefável e impoluto líder que tanto tem beneficiado seus amigos e os amigos dos amigos.
“O principal perigo que a imprensa mundial está correndo é a viabilidade econômica, sem a qual não há independência jornalística”. Essa frase foi pronunciada, em 2019, numa conferência promovida pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) e pela Associação Mundial de Jornais e Editores de Notícias (WAN-IFRA), no Rio de Janeiro, pelo presidente dessa última, o espanhol Fernando de Yarza López-Madrazo (diretor do jornal Heraldo de Aragón, de Zaragoza). Claro que a frase não era apenas esse período, que cada um de nós entende e interpreta conforme suas visões político-sociais. Tinha uma continuação que lhe adicionava um contexto cheio de complexidades e que também pode ser interpretado de várias formas: “Também há um ataque aos meios de comunicação, por parte de líderes populistas, tentando nos desprestigiar. Estamos no meio desta tempestade perfeita: por um lado temos que encontrar um modelo de viabilidade econômica que assegure nossa independência e, por outro, sobreviver ao fogo amigo das próprias lideranças políticas, que deveriam estar protegendo os meios de comunicação, como garantia da democracia, mas, no entanto, nos atacam.”
Não vou, nem quero, mergulhar nesse lago de águas turvas e fundo lodoso. Apenas quero pinçar, dentre a vegetação ribeirinha, a pequena dúvida que se contorce como minhoca num anzol: que democracia os “meios de comunicação” defendem quando adaptam, de bom grado e sem grandes dilemas morais, sua pauta jornalística aos interesses de quem pode colaborar com a “viabilidade econômica”, que afirmam ser tão valiosa para assegurar a tal “independência jornalística”?
Olhando por outro lado, para essa minhoca dubitativa (como vocês sabem, a coisa mais difícil é descobrir qual extremidade de uma Lumbricidae é uma e qual é outra), a coisa fica assim: que independência jornalística os “meios de comunicação” defendem quando adaptam, de bom grado e sem grandes dilemas morais, sua visão de “democracia” para assegurar a tal de “viabilidade econômica”?
No século passado, após a intensificação da ditadura, com a edição do AI-5 (AI de Ato Institucional, ainda não havia a inteligência artificial), houve uma multiplicação de pequenos jornais, politicamente independentes: os nanicos, ou alternativos, como eram chamados. O grande problema dos nanicos era, ora vejam só, a viabilidade econômica. E, como tantos já disseram, em tantos discursos, em tantas situações, “sem viabilidade econômica não há independência jornalística”. Não surpreende, portanto, que diante dessa constatação, “empresários” pouco comprometidos com o Jornalismo, tenham concentrado os esforços apenas na viabilidade econômica.
Para encerrar: sim, sim, existem e sempre existiram “empresários de comunicação” que têm horror ao Jornalismo, que detestam jornalistas, que sempre procuram maneiras de acabar com essa bobagem woke e atrasada de “independência jornalística”. Esses, sem muito alarde, em voz baixa, porque preferem o conforto das salas fechadas, do petit-comité e dos acertos por baixo dos panos, dizem que “o principal perigo que ameaça a imprensa mundial é a independência jornalística”.
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Cesar Valente é jornalista, mestre em Jornalismo e pesquisador do objETHOS