Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O professor que renunciou, derrotado pelos celulares na sala de aula

“Cansei, me rendo”: o professor Haberkorn desistiu dos alunos de jornalismo, arrebatados pelo WhatsApp e Facebook

O jornalista uruguaio Leonardo Haberkorn, 58 anos, é um dos profissionais mais respeitados de seu país. Já escreveu 16 livros, trabalhou nas agências Reuters e Associated Press e nos semanários Aquí e Búsqueda, foi editor das revistas Tres e Punto y Aparte. Criou e dirigiu o suplemento Qué Pasa do jornal El País. Comandou o jornalismo investigativo do programa de TV Memorias de la Costa, do canal 10 de Montevidéu. Hoje, ainda escreve para revistas na Colômbia, México, Argentina e Peru. 

No entanto, seu trabalho de maior repercussão tem pouco a ver com o jornalismo e tem tudo a ver com o futuro da profissão. O texto que deu reconhecimento internacional a Haberkorn é relativamente curto, enxuto: meras 73 linhas que abrigam 886 palavras. É uma carta de despedida, um desabafo, um grito de desespero que o levou a renunciar ao posto de professor de jornalismo da Universidade ORT, escola em Montevidéu com cinco faculdades e 13 mil alunos. 

No seu blog El Informante, Haberkorn publicou a sua comovente carta de renúncia no mesmo dia, em 3 de dezembro de 2015, três semanas antes de completar 52 anos. Tornou-se um manifesto virtual, um documento viral e vivo de um mundo distópico que escancara uma perversa contradição da tecnologia disruptiva de nossos tempos: um excesso de informação caótica para uma geração intelectualmente vulnerável e assediada por um conhecimento cada vez mais difuso, raso, medíocre.

“Cansei de brigar contra os celulares, o WhatsApp e o Facebook. Me venceram. Me rendo. Jogo a toalha”, escreveu Haberkorn no início de sua carta aberta, ao anunciar que, naquele dia, dava aula na universidade pela última vez. Ele justificou: “Cansei de ficar falando de assuntos que me apaixonam para jovens que não podem despregar os olhos de um telefone que não para de receber selfies. Claro, é certo, nem todos são assim. Mas, cada vez são mais”.

Como professor, Haberkorn se lamenta de que “é cada vez mais difícil explicar como funciona o jornalismo para gente que não o consome, nem vê nenhum sentido por estar informado”. Certo dia, o professor fez uma série de perguntas à sua classe de 20 alunos. Indagou:  que está acontecendo na Síria, país do Oriente Médio mergulhado há uma década numa guerra civil que já matou mais de 470 mil pessoas, a metade civil, e produziu mais de 5 milhões de refugiados? Ecoou na sala um silêncio de catedral. 

Ainda existem bancas de jornais

Haberkorn tentou quebrar o mutismo, levantando então uma questão doméstica. Perguntou à classe qual o partido político do Uruguai tradicionalmente ligado à PIT-CNT (o Plenário Intersindical de Trabalhadores-Convenção Nacional dos Trabalhadores, a maior central sindical do país, que tem 400 mil filiados em um país de 3 milhões de habitantes). A resposta foi um silêncio tumular: ninguém soube dizer que era a Frente Ampla, a coalizão de esquerda que exerceu o poder na democracia durante 15 anos, elegendo o presidente três vezes a partir de 2005, um deles o mítico José Mujica. O silêncio constrangedor continuou quando Haberkorn perguntou qual partido dos Estados Unidos era mais liberal, mais à esquerda: Democrata ou Republicano?

A prospecção continuou: alguém aqui sabe quem é Mario Vargas Llosa? Desta vez, responderam que sim. Alguns conheciam o escritor peruano, ganhador do Nobel de Literatura em 2010 e, por acaso, também jornalista. Alguém aqui leu algum de seus 21 livros, provocou o professor? Não, ninguém. Reflexão de Haberkorn em sua carta: “Conectar gente tão desinformada com o jornalismo é complicado. É como ensinar botânica a alguém que vem de um planeta onde não existem vegetais”. Certo dia, o professor deu uma tarefa a seus alunos: encontrar uma notícia na rua. Uma estudante voltou com a novidade alentadora: “Professor, ainda existem bancas que vendem jornais e revistas…”

Mário Vargas Llosa e o filme Laranja Mecânica: ninguém leu seus livros, nenhuma pinça agora é necessária

Haberkorn lembra que no filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick, o personagem Alex (interpretado por Malcolm McDowell), um jovem sociopata viciado em ultraviolência e em Beethoven, é submetido à ‘Técnica Ludovico’, um brutal experimento de condicionamento psicológico para provocar no paciente ojeriza, ao invés de satisfação, com cenas de selvageria. Conclusão desalentada do professor: “No filme, mantinham com pinças os olhos abertos do protagonista, para que visse uma sucessão interminável de imagens, velozes, rápidas, violentas. Com a nova geração não há necessidade de pinças”. Certa vez, conta Haberkorn, a classe se distraía com um vídeo que uns passavam para os outros. Ele perguntou do que se tratava, na esperança de que o vídeo pudesse servir como contribuição ou gatilho para alguma coisa. Mostraram a gravação ao professor: “Era um vídeo de Facebook de um filhote de leão brincando”, descobriu, com um riso amarelo. 

Instala-se, aí, um conflito insuperável entre o professor e o jornalista, a dupla condição de Haberkorn: “Chega o momento em que ser jornalista te joga contra tudo isso. Porque o jornalista é treinado para se colocar no lugar do outro, cultiva a empatia como ferramenta básica de trabalho. E então vê que estes jovens – que ainda têm a mesma inteligência, a simpatia e o calor de sempre –foram enganados, que a culpa não é só deles. Que a incultura, o desinteresse e a alienação não chegaram até eles por si só. Que lhes foram matando a curiosidade e que, com cada professor que deixou de corrigir seus erros ortográficos, lhes foi ensinado que tudo é mais ou menos o mesmo. Depois, quando se apercebem que eles também são vítimas, quase sem se dar conta [o professor] vai baixando a guarda. O mau acaba sendo aprovado como medíocre. O medíocre passa por bom. E o bom, nas poucas vezes que chega lá, é celebrado como se fosse brilhante. Eu não quero fazer parte desse círculo perverso”, revoltou-se Haberkorn na sua carta de despedida. 

O concerto de Mozart com o general

Por sua fé no jornalismo de excelência, o professor insistia em levar até seus alunos grandes exemplos que ele via no jornalismo, “esses que incendeiam a alma até em cima de um iceberg”. Assim, projetou o filme O Informante [The Insider, 1999], dirigido por Michael Mann e com atuações memoráveis de Al Pacino e Russel Crowe. Teve sete indicações para o Oscar. É a história empolgante de um jornalista do programa 60 Minutes, da rede CBS, que convence um químico de uma grande fábrica de cigarros norte-americana a revelar na TV os bastidores criminosos da indústria do tabaco. Para aumentar o efeito viciante da nicotina, a fábrica acrescentava ilegalmente ao cigarro dois aditivos, cumarina e amoníaco, o que afetava diretamente os rins e o fígado dos fumantes. “Já vi este filme mais de 200 vezes e ainda há cenas em que tenho que me segurar para não chorar… Apesar disso, vi gente dormindo na sala de exibição e outros conversando no WhatsApp e no Facebook!”, espantou-se Haberkorn. 

Outra fragorosa derrota aconteceu quando ele levou para a sala de aula uma entrevista histórica da jornalista italiana Oriana Fallaci (1929-2006) com o general argentino Leopoldo Galtieri (1926-2003). Foi feita para a revista espanhola Cambio16 em 2 de junho de 1982, no auge da Guerra das Malvinas, quando as tropas de Buenos Aires ainda resistiam nas ilhas ao ataque final dos ingleses. Haberkorn tem a consciência, que seus alunos nunca tiveram, da importância desse trabalho.

“O embate de Fallaci com Galtieri é usado nas aulas de jornalismo como um exemplo de entrevista confrontadora. É clara a preparação prévia da jornalista, seu conhecimento a fundo do general, suas frases e atos. Conhece e tem informação detalhada das circunstâncias que cercam o seu entrevistado. Tem um ponto de vista, mas está muito atenta ao que responde o ditador. Repergunta. Avança. Não se acovarda. O resultado é brilhante. Pode-se dizer que, para o jornalismo, essa entrevista de Fallaci é como um concerto de Mozart para a música”, definiu o professor em seu blog em fevereiro de 2016, três meses após sua carta-renúncia. 

Haberkorn fazia o possível para abrir os ouvidos de seus alunos para os acordes vigorosos de Fallaci em sua primorosa exibição com o general. Como ele conta na carta: “É preciso uma aula inteira para preparar o ambiente. Primeiro tenho que contar quem era Galtieri, o que foi a Guerra das Malvinas, em que momento histórico a corajosa jornalista italiana se sentou diante do ditador. Expliquei tudo isso a eles. Mostrei o vídeo da Plaza de Mayo repleta de uma multidão enlouquecida aplaudindo Galtieri, quando disse: ‘Se eles [ingleses] querem vir, que venham! Vamos lhes dar combate’. 

“Normalmente nesse momento da aula, todo ano, eu já tinha conseguido que a maior parte da classe acompanhasse o assunto com fascinação. Agora, este ano, não. Só vi expressões distraídas. Desinteresse. Um rapaz de pernas abertas olhando o seu Facebook. O ano inteiro foi isso. Chegamos enfim à entrevista de Fallaci. Lemos os trechos mais duros e inesquecíveis. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Eles só queriam que a aula terminasse. Eu também”, são as derradeiras, inconsoláveis palavras de sua carta-desabafo de 886 palavras.

Galtieri bombardeado por Fallaci: o general arrogante nunca viu uma guerra e a repórter esteve em três. (Imagem: Cambio 16)

É preciso uma surdez absoluta ou a alma gelada de um iceberg para não se derreter diante do concerto jornalístico que Fallaci executa com a maestria de um virtuose no encontro belicoso com Galtieri. Haberkorn a reverencia já no título de sua carta-renúncia: “Com minha música e Fallaci em outro lugar”. A entrevista gravada de mais de duas horas comporta 45 perguntas – duras, impertinentes, corajosas, como se espera de um repórter respeitável, que nunca se intimida. Na pergunta 35, exausto, o general capitula diante da repórter incansável: “Veja, estou falando com você há mais de duas horas. Tenho que ir embora…”. Ainda assim, Fallaci o bombardeia com mais 10 perguntas, antes do ponto final. 

A repórter viu a guerra, o general, não

Terceiro dos quatro generais da ditadura que oprimiu a Argentina entre 1976 e 1983, Galtieri é o militar arrogante e falastrão que decidiu invadir as Malvinas em 2 de abril de 1982. A guerra durou 74 dias, matou 649 argentinos e 255 ingleses, derrubou 84 aeronaves (47 de Buenos Aires, 34 de Londres) e afundou 14 navios de guerra – 8 ingleses e 6 argentinos. 

Quando Fallaci se sentou diante de Galtieri na Casa Rosada, em 2 de junho, exatos dois meses após a invasão, as últimas tropas argentinas já estavam cercadas pelo Exército inglês nas Malvinas. Galtieri, apesar disso, ainda se mostrava gabola e presunçoso diante da repórter, negando a derrota iminente que aconteceria doze dias depois, com a rendição final dos argentinos em 14 de junho. A derrota humilhante precipitou a queda da ditadura no ano seguinte, 1983. 

Até aquela data, o general temido jamais havia sofrido um bombardeiro tão implacável de um jornalista. Na oitava pergunta, Fallaci intensificou o fogo: “A história ensina que quando as coisas vão mal em um país, aqueles que estão no poder fazem a guerra. Assim o povo se excita e esquece os fracassos, as culpas, os crimes de quem governa. Em sua megalomania em 1940, Mussolini entrou em guerra justamente por isso. A comparação o ofende?” Quando o general respondeu que se ofendia, e muito, Fallaci contra-atacou: “Graças a Deus. Mas, se [a invasão] não é um cálculo frio, então houve erro de cálculo…”

Quando Galtieri disse que a primeira-ministra Margareth Thatcher era “politicamente inadequada ao momento histórico que vive a humanidade”, Fallaci disparou de volta: “Tampouco a senhora Thatcher tem uma elevada opinião sobre você, Senhor Presidente. Ela o define como um tirano fascista…”. Na pergunta seguinte, após o pedido de trégua do general já baqueado por duas horas de duro combate, Fallaci abriu um tiroteio que deixou Galtieri crivado de balas que não conseguiu evitar, nem rebater. É um momento sublime de jornalismo de alto quilate que confronta, revela e se eleva. Leia:

Fallaci – Senhor Presidente, você é um general, não é verdade? Você é um soldado. Você usa uniforme, certo? Você já esteve alguma vez em uma guerra?

Galtieri – Bem, outro tipo de guerra. 

Fallaci – Não, não. Digo uma guerra, uma guerra verdadeira. Aquela onde se dispara e se morre em combate. 

Galtieri – Não, nunca estive, não em uma guerra convencional.

Fallaci – Eu, no entanto, já. Já estive em três guerras como correspondente de guerra. incluída a do Vietnã. Por isso eu sei o que é a guerra. Eu sei isso que você não sabe. O problema é que as guerras nunca são travadas por aqueles que as declaram. Eles nem sequer as vêem.

Galtieri – Muito certo. Mas não deveria dizer isso só a mim…

Fallaci – Santas palavras, Senhor Presidente, mas soam um tanto estranhas ouvi-las pronunciadas pelo representante de um regime que nunca se preocupou com a liberdade. O seu é uma ditadura, Senhor Presidente, não nos esqueçamos disso.   

Os assuntos velhos do velho jornalismo

Essa é uma pequena amostra do que perderam aqueles alunos distraídos, indolentes de Haberkorn, que preferiam ver banalidade no seu Facebook ou responder ao WhatsApp enquanto o professor teimava em mostrar um exemplo de jornalismo de excelência. Gente de mais de 40 anos, segundo ele, mostraria depois até menos compreensão do que jovens de 18. Alguns reclamaram pela ousadia do professor em exibir a estudantes de 2015 a entrevista de Fallaci com Galtieri feita em 1982, um acontecimento de 33 anos atrás.   

A Guerra das Malvinas, a Divina Comédia de Dante Alighieri, o diário de Anne Frank: tudo coisa velha, antiga

“Até parece que a apatia e a falta de curiosidade – que são piores e mais graves do que o abuso do celular – são culpa minha e da repórter italiana”, lamentou Haberkorn em seu blog, reagindo com ironia: “A entrevista é velha, dizem as mentes esclarecidas. Fala das Malvinas e da ditadura na Argentina. Temas velhos! Os grandes temas da entrevista são a democracia e os desaparecidos políticos. Mas, não falemos mais dos desaparecidos…. É coisa velha! Com esta mesma forma brilhante de raciocínio, logo andarão por aí pedindo aos professores de literatura que excluam das aulas a Divina Comédia, de Dante Alighieri [século 14]. É muito antiga! Melhor do que ler algo menor como o Diário de Anne Frank  [1942-44], muito antigo!, é folhear o catálogo da grande loja de departamento, que é mais novo, mais recente!”. 

Haberkorn não acredita que uma sociedade democrática seja viável com cidadãos tão desinformados, sejam ou não jornalistas ou futuros jornalistas. “A lacuna que os jovens vão arrastar, nesse sentido, é alarmante”, prevê. O sentido lamento de Haberkorn com a falta de reação de seus alunos não indica uma prevenção contra as redes sociais e suas plataformas. “São ferramentas maravilhosas. Eu as uso em minha vida pessoal e profissional, como jornalista e professor. Sempre crio um grupo de Facebook no curso, onde compartilhamos material de interesse e publicamos trabalhos, que todos podem ver na tela e corrigir em conjunto. Mas, claro, ter o Facebook aberto reforça a tentação de prestar atenção em outras coisas”, adverte ele. 

“Não sou contra a Internet, nem o Google, nem Facebook, Twitter ou WhatsApp. Uso todos. Tenho este blog e trabalho em um portal. Como jornalista, tiro muito bom proveito de todas essas ferramentas. Todas são instrumentos que permitem potencializar o trabalho jornalístico. Claro, desde que se use adequadamente. Se estás entrevistando o presidente e te distrais olhando a última mensagem de Whatsapp de teu grupo de pilates, a entrevista não vai sair muito bem. Se estás escrevendo um texto, e sentes urgência em ver a última selfie da noiva do irmão do primo do vizinho da casa alugada na praia, algo está mal…”.

A carta-renúncia de Haberkorn parece também ser coisa velha, revelada lá em 2015, mas todo ano ressurge com força, aqui e ali, porque a crescente submissão das novas gerações às redes sociais dá uma preocupante atualidade à denúncia do jornalista uruguaio. É um problema cada vez mais recorrente nas escolas de jornalismo do mundo inteiro, assediadas pela overdose de novas plataformas que preferem o entretenimento à informação. Inebriada pelas imagens fugazes, pela música envolvente e pelo conteúdo raso, que não exige leitura nem cansa o cérebro, as novas gerações se viciam em plataformas trepidantes e balançantes que prescindem de conteúdo, de reflexão, de contexto e de informação – elementos básicos do jornalismo de qualidade e relevância. 

Nada simboliza melhor essa atração irresistível pela futilidade do que o TikTok, um aplicativo de mídia para compartilhar vídeos curtos, na sua maioria dancinhas bobocas e manifestações de puro narcisismo, lançado na China em 2016. Apesar do pouco tempo de vida, alcançou 1 bilhão de usuários em 2021. O campeão de seguidores nessa multidão é Khabane ‘Khaby’ Lame, um senegalês de 22 anos que vive em Milão, Itália, que saltou do anonimato e hoje arrasta mais de 146 milhões de ‘tiktokers’. 

Pesquisa desta semana da NewsGuard revela que mais de 20% das buscas no TikTok trazem conteúdo com informações equivocadas, ou, no mínimo, sem embasamento. O resultado recorrente promove desinformação de forma consistente, principalmente entre o público jovem, que representa a maior parte da base de usuários da plataforma. Além dos resultados, os pesquisadores também compararam os termos sugeridos para buscas no TikTok. A maioria das sugestões trazia ideias negacionistas, ou enviesadas como “aquecimento global refutado” ou “vacina covid alertas”. As mesmas buscas no Google ofereciam sugestões mais neutras, diretas e menos subjetivas, como “melhores vacinas covid“.

A repórter tira o chador na cara do aiatolá

Nesse frenesi tecnológico, quem vai perder tempo com jornalismo? É difícil imaginar que dessa aglomeração – estiolada pela irrelevância em massa das trepidantes redes sociais – possa brotar uma nova Oriana Fallaci. É bem mais provável que outros desalentados da estirpe de Haberkorn desistam das escolas, atropelados pela manada açulada pela superficialidade galopante. 

Se os alunos de Haberkorn fossem menos preguiçosos, poderiam descobrir outra joia jornalística de Fallaci em seu repertório. Em setembro de 1979, três anos antes de Galtieri, a repórter italiana exerceu seu esporte predileto: enfrentar sozinha, com seu gravador e suas perguntas impertinentes, homens poderosos e arrogantes. Ela esperou pacientemente durante 10 dias, na cidade sagrada de Qom, no Irã, o momento solene da entrevista com Ruhollah Khomeini (1902-1989), o severo e irascível aiatolá que aos 79 anos ainda liderava com mão de ferro a radical revolução islâmica iraniana. Até que, em 12 de setembro, ela foi finalmente levada até a escola religiosa de Faizeyah, onde o líder religioso mantinha suas audiências. Fallaci estava acompanhada pelo ministro e futuro presidente Abolhassan Banisadr e dois intérpretes.     

A eterna expressão fechada, a escassez de sorriso e o cenho sempre cerrado do imã do Irã não intimidaram a repórter, sentada num tapete, descalça e embrulhada no tradicional chador, o véu preto muçulmano que a envolvia dos pés à cabeça. Fiel ao seu estilo provocador, ideal para enfrentar generais ou aiatolás, em dado momento Fallaci entrou de sola na questão religiosa:

O casmurro Khomeini e Fallaci: antes de tirar o chador preto da cabeça, que ela chamou de “estúpido trapo medieval”

Fallaci – Por favor, Imã, há muitas coisas que ainda quero perguntar. Por exemplo, este chador que me obrigaram a vestir, para vir até aqui, e que vocês insistem que todas as mulheres devem usar… Diga-me: por que você as obriga a se esconder, todas empacotadas debaixo destas roupas desconfortáveis e absurdas, tornando difícil trabalhar e movimentar-se? E no entanto, mesmo aqui, as mulheres têm demonstrado que são iguais aos homens. Lutaram tal como os homens, foram aprisionadas e torturadas. Elas também ajudaram a fazer a revolução…

Khomeini – As mulheres que contribuíram para a revolução foram, e são, mulheres com o traje islâmico, não mulheres elegantes, inventadas como você, que andam por aí todas descobertas, arrastando atrás delas uma cauda de homens. As coquetes que se maquiam e vão para a rua exibindo os seus pescoços, os seus cabelos, as suas formas, não lutaram contra o Xá. Elas nunca fizeram nada de bom, não aquelas. Elas não sabem ser úteis, nem socialmente, nem politicamente, nem profissionalmente. E isto porque, descobrindo-se, distraem os homens e os perturbam. Depois elas distraem e perturbam até mesmo outros

Fallaci – Isso não é verdade, Imã. De qualquer forma, não estou falando apenas de uma peça de roupa, mas do que ela representa. Ou seja, da condição de segregação em que as mulheres foram mais uma vez lançadas, após a revolução. O fato de não poderem estudar na universidade com homens, ou de trabalhar com homens, por exemplo, ou ir para a praia ou para uma piscina com homens… Elas precisam mergulhar em separado, com seu chador. A propósito, como é que se nada num chador?

Khomeini Isto não é da sua conta. Os nossos costumes não são da sua conta. Se não gosta de vestuário islâmico, não é obrigado a usá-lo. Porque o traje islâmico é para jovens mulheres, boas e respeitáveis.

Fallaci – É muito amável da sua parte, Imã. E já que disse isso, vou tirar este trapo estúpido e medieval agora mesmo. Aqui. Pronto…

A entrevista de Khomeini ocupou três páginas da edição de 3 de outubro de 1979 do New York Times. Os alunos distraídos de Haberkorn certamente não sabem disso. E provavelmente a jornalista Oriana Fallaci é também desconhecida para a esmagadora maioria dos usuários das 10 redes sociais mais populares do mundo, povoadas por uma multidão superior a 9,8 bilhões de pessoas – mais do que a população total do planeta, com quase 8 bilhões. 

A raça superior dos que se dizem influencers

Nessa miríada social, apareceu uma figura nova, que talvez os alunos absortos de Haberkorn conheçam melhor: os autodenominados influencers, ou influenciadores digitais, uma raça superior e presunçosa de personalidades das grandes redes, que pela simples exposição ou fama ganham uma manada de seguidores que, bovinamente, enriquecem ainda mais seus ídolos. 

No Instagram, a rede de compartilhamento de fotos que hoje abriga 1,4 bilhão de usuários, os dez perfis de influenciadores mais seguidos no Brasil envolvem jogadores de futebol, comediantes, cantores e atrizes – de Neymar e Ronaldinho Gaúcho a Gusttavo Lima e Anitta, passando por Maísa, Bruna Marquezine, Larissa Manoela e Whinderson Nunes, com uma fidelidade canina a cada um variando entre 43 milhões e 178 milhões de caudatários. Só o tempo dirá quantos deles foram realmente decisivos e importantes para definir o destino do país e dos brasileiros. 

Em busca da abundância sonante que ecoa a cada click monetizada por esses influenciadores, os grandes canais de mídia hoje arregalam os olhos para quem pode atrair mais audiência e renda. E os jornalistas, que Haberkorn tentava moldar inutilmente, não estão entre eles. Jornalista, para este novo e conectado empresariado, representa apenas gasto, não renda. 

No final de agosto passado, um dos mais importantes empresários de comunicação do Brasil – dono de revistas, jornais, emissoras de rádio e TV, sites e portais – teve uma esclarecedora conversa virtual, em off, com executivos e especialistas da mídia. “Eu quero ter todos os influencers possíveis comigo”, confessou sem pudor. Em nenhum momento ele disse que sonhava em ter os melhores jornalistas em suas empresas. Seu sonho de consumo era arrebanhar os influencers mais descolados, mesmo os bobocas, desde que tivessem visibilidade para atrair as manadas de seus bovinos seguidores, que pouco lêem, mas tudo compram. Essa é a fórmula vencedora que o atualizado empresário, que se diz “intuitivo” e “pragmático”, imagina para embrulhar seu suposto “jornalismo relevante” e ser ainda capaz de seduzir uma dócil audiência, sempre com a ideia fixa de milhões de assinantes digitais. Encerrada a conversa virtual com o empresário, pelo menos um dos especialistas declarou-se “deprimido” com o que ouviu. 

O dono do Lulu e o profeta do Cosmos

Um dos influencers de sucesso mais recente no Instagram é o uruguaio Agustín Fernandéz, 31 anos. Trocou seu país pelo Brasil em 2011. Uma década depois, em agosto de 2021, comemorou seus 30 anos com uma festa no Café Journal, badalado restaurante de São Paulo, com oito convidados especiais, que chegaram de Brasília em jatinho da FAB: a então ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, seis parentes da família do capitão-presidente e a primeira-dama Michelle Bolsonaro, que ele diz “amar de paixão” e que o adotou como maquiador. Aqui, diz ele, transformou-se no “maior maquiador do Brasil” e virou empresário de sucesso, com mais de 300 produtos de beleza em sua “Loja do Divo”. Agustín integrou a comitiva de Bolsonaro que foi a Londres para o funeral da rainha Elizabeth II.

Agustín, maior do Brasil: ‘filho adotivo’ do capitão homofóbico, dono do lulu ‘Jair Messias’ e maquiador de Michelle

É crítico do movimento LGBTQIA+, embora tenha sofrido abuso e prostituição no Uruguai. Tem dois cachorrinhos da raça Lulu da Pomerânia, que batizou com os nomes de seus ídolos: ‘Beyoncé’ e ‘Jair Messias’. Conheceu Bolsonaro antes de se eleger, apoiou o capitão e, por isso, diz ter recebido ameaças de morte. “Só eu sei o que vivi por apoiar Jair Messias Bolsonaro, um homem de bem, que me adotou como filho, mesmo com a fama de homofóbico. Logo eu, né? Um gay, afeminado, que se veste de mulher”, disse à Folha de S.Paulo. 

A frase que deu fama antigay a Bolsonaro foi dada em entrevista à revista Playboy, em junho de 2011: “Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí”. Agustín usa um bigodinho discreto e uma barba rala, cuidadosamente aparados. Com todas essas amizades e referências, Agustín hoje reúne mais de 4,8 milhões de seguidores no Instagram. Com esses números, está perfeitamente credenciado a se juntar ao empresário de mídia que quer todos os influencers junto dele. 

A internet ainda estava no berço, em 1995, quando apenas 3% das salas de aula nos Estados Unidos estavam conectadas à rede incipiente e quando a maioria dos alunos preguiçosos de Haberkorn nem tinha nascido, no ano em saiu um livro feito para sacudir as cabeças mais distraídas.  O mundo assombrado pelos demônios – A ciência vista como uma vela no escuro, é um dos últimos dos 20 livros publicados pelo nova-iorquino Carl Sagan (1934-1996), o polímata mais conhecido do Século 20 no planeta Terra, que ele reverenciou com o livro Pálido Ponto Azul. Ele era cosmólogo, astrônomo, físico, cientista planetário, astrofísico, escritor, roteirista e apresentador de televisão. Com seu carisma e linguagem popular, decifrou os mistérios e maravilhas do universo, resumidos em 1980 em empolgante série de 13 episódios que integram Cosmos¸ um exemplo formidável da abrangência e eficácia dos meios audiovisuais para divulgar a ciência e combater a desinformação.

No livro O mundo assombrado, Sagan faz uma defesa veemente do método científico e do ceticismo como ferramentas essenciais para se opor à superstição e à pseudociência. Naquele ano, 1995, nasceu a primeira rede social da história, a ClassMates.com, que tinha uma pretensão singela: facilitar o reencontro de amigos que estudaram juntos, no colégio ou na faculdade. Não existia essa cornucópia de redes globais que hoje congestionam o tráfego cibernético e canalizam parte considerável das informações para o entretenimento supérfluo e vazio. 

Na infância da Internet, Sagan pensava então nos Estados Unidos para um problema que hoje é global: “O emburrecimento da América é muito evidente no lento declínio do conteúdo substantivo nos tão influentes meios de comunicação, nos 30 segundos de informações que fazem furor (que agora já são 10 segundos ou menos), na programação de padrão nivelado por baixo, na apresentação crédula da pseudociência e da superstição, mas especialmente em uma espécie de celebração da ignorância”. Sagan estava antecipando, duas ou três décadas antes, o advento das trevas do bolsonarismo e o travamento intelectual dos alunos anestesiados do professor Haberkorn. 

Ao contrário do que diz sua carta, não podemos cansar, nem nos entregar, nem jogar a toalha.  Aulas como as de Haberkorn nunca deveriam terminar. E não podem acabar em silêncio. 

A Carta-renúncia: o texto do professor no seu blog, anunciando que tinha cansado e jogado a toalha.

A Entrevista histórica da Fallaci com Galtieri: texto integral da entrevista, feita para a finada revista espanhola Câmbio16, de Madrid, em 2 de junho de 1982, e aqui replicada em agosto pela revista El Porteño, de Buenos Aires 

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Luiz Cláudio Cunha, jornalista, integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), no grupo de tarefa que investigou a Operação Condor, e é autor de  Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. L&PM, 2008). E-mail: cunha.luizclaudio@gmail.com