Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O triste fim dos três grandes jornais catarinenses

De maneira despercebida, marcas tradicionais do jornalismo regional do estado sucumbem praticamente sem explicações ao público leitor, apagando referências históricas e alterando o cenário da comunicação. (Imagem: Giovanni Ramos.)

Diário Catarinense, A Notícia e Jornal de Santa Catarina. Os três maiores e mais tradicionais jornais catarinenses morreram sem direito a um enterro digno. O Grupo NSC, proprietário dos jornais desde março de 2016, quando comprou os veículos da RBS no estado, deixou de usar as marcas depois de interromper as edições diárias impressas. Assim, no final do mês de maio, sem justificativas por parte do grupo, as redes sociais de A Notícia e Santa passaram a se chamar NSC Total Joinville e NSC Total Blumenau, respectivamente. Em Florianópolis, o DC virou apenas NSC Total. Ignorando a identificação exercida pelas marcas nas relações com as comunidades locais, o caso chama a atenção possivelmente como o único observado entre estados brasileiros: marcas históricas de jornais, legitimados pela comunidade e reconhecidos como referências regionais sucumbem de modo despercebido em desrespeito às próprias trajetórias construídas.

Alguém pode dizer que são apenas nomes que deixam de existir, num período marcado por transformações profundas com o fim dos impressos, no jornalismo pós-industrial. Mas nós defendemos que não se trata apenas do fim de marcas outrora fortes que acompanharam a comunidade local, algumas por mais de 50 anos, como no caso do Jornal de Santa Catarina, de Blumenau. São modificações que alteram também a relação da comunidade com o jornalismo local e, por consequência, o consumo da informação, em três das principais e maiores cidades do estado. Sem sequer que o seu próprio público leitor tenha explicações sobre essas mudanças estruturais, referências que serviram como guias para a população regional por anos seguidos desaparecem de modo repentino. Quais as consequências disso? Difícil prever. Propomos aqui reflexões em torno de possíveis interpretações para os significados desse novo cenário.

Nosso olhar é atravessado pelas experiências que carregamos: somos jornalistas por formação, atuamos parte de nossa trajetória profissional em Blumenau, dividimos a mesma redação do Santa, nos anos 2000, enquanto repórteres da editoria Geral e temos nos dedicado à pesquisa em jornalismo. Essa bagagem, portanto, condiciona as leituras e interpretações a seguir. Justamente por termos vivenciado a experiência de atuar como jornalistas no veículo, num período em que a redação era uma das maiores e mais influentes do estado, conhecemos a realidade tratada de modo particular, sabendo das limitações, oportunidades e desafios do fazer jornalismo regional no contexto catarinense. São essas impressões e inquietações que buscamos compartilhar aqui, como forma de proporcionar novas conjecturas e possibilidades. Também de pensar o futuro do jornalismo local diante de tal panorama.

O Grupo NSC decretou a morte dos três jornais em 2019, quando deixaram de circular as edições impressas das publicações. Em vez de manter uma edição digital própria para cada marca, em respeito à trajetória particular de cada veículo e seus vínculos comunitários, o grupo optou por apostar na marca NSC Total, um portal único de notícias para todo o estado catarinense. No lugar dos diários impressos entrou uma edição semanal em papel praticamente igual para todos os jornais, ganhando a aparência não mais de jornal, mas de revista semanal e mudando basicamente o título na capa.

No entanto, as redes sociais continuavam a preservar as marcas, como referência para seus públicos. Em maio, a NSC trocou os nomes nas redes e passou a privilegiar a marca NSC Total. Além disso, os nomes dos jornais não constam mais no menu do portal, aparecendo apenas as referências à cidade e região. Com isto, o grupo abandona de vez os jornais que adquiriu em 2016.

Que jornais são estes?

O Diário Catarinense, o Jornal de Santa Catarina e A Notícia foram nomes de peso do jornalismo regional do estado por décadas. Lançaram tendências, como a adoção de Guias de Ética e Manuais de Redação, além de promoverem a criação do Conselho do Leitor, inovação implementada por grandes jornais que reúne leitores de diferentes perfis com frequência para avaliar o veículo. Medidas que também influenciaram e impactaram a cobertura jornalística de jornais menores.

O Diário Catarinense foi um jornal diário lançado em 1986 pelo antigo Grupo RBS. Com sede na capital Florianópolis, o jornal recebeu um grande investimento do grupo para atuar com força em todo o estado, com diversas sucursais. Conhecido popularmente como DC, o jornal foi o primeiro do Brasil a ter uma redação totalmente informatizada desde o seu lançamento.

Com sede em Blumenau, o Jornal de Santa Catarina resultou da iniciativa de um grupo de empresários locais. Sua primeira edição é de 22 de setembro de 1971, na época, o primeiro jornal catarinense impresso em offset, uma tecnologia presente apenas nos grandes centros urbanos àquele momento. O Santa, como era conhecido, foi criado para ser um jornal de abrangência estadual, com sucursais em outras cidades catarinenses. O jornal passou por uma crise financeira em 1990, quando viu seus jornalistas fazerem a mais famosa greve da categoria. Em 1992, o jornal foi vendido para o Grupo RBS, que transformou a publicação em um jornal regional do Vale do Itajaí. Tornou-se o jornal catarinense que mais acumulou Prêmios Esso, até 2016, o mais tradicional prêmio da imprensa brasileira.

A Notícia foi um dos jornais catarinenses mais antigos e tradicionais do território catarinense. Sua primeira edição circulou há 100 anos, e, assim como Santa e DC, também atuou em todo o Estado, com mais força na cidade de Joinville, onde estava sediado. Nos anos 1990 e início dos anos 2000, foi o principal concorrente do Diário Catarinense. Em 2006, o jornal também foi vendido para a RBS. O grupo gaúcho deu o mesmo destino ao AN que tinha dado ao Santa: transformou-o num jornal regional.

O fim da RBS

Com sede no Rio Grande do Sul, o Grupo RBS atuou em Santa Catarina entre os anos de 1979 e 2016. Inicialmente no setor de rádio e TV, com as emissoras afiliadas da Rede Globo no Estado, a RBS passou a investir no jornalismo impresso catarinense em 1986, quando abriu o Diário Catarinense. A compra do Santa em 1992 e do AN em 2006 fez com que o grupo virasse um monopólio estadual, controlando a mídia das três maiores cidades de Santa Catarina. Em crise financeira frente à Operação Zelotes, a RBS vendeu todas as operações em SC para o grupo NC, do empresário Carlos Sanchez, do setor farmacêutico em sem experiência anterior no ramo da comunicação, que rebatizou o conglomerado midiático no estado para NSC, em referência à “Nossa Santa Catarina”.

Quando o Grupo NSC anunciou o fim das edições impressas de AN, DC e Santa, em outubro de 2019, o objetivo inicial do grupo era apostar tudo na marca NSC Total na internet. Porém, os nomes Santa, AN e DC foram mantidos e usados nas redes sociais e como sub-sites do NSC Total.

Em 2021, nas comemorações dos 50 anos do Jornal de Santa Catarina, o jornalista Augusto Ittner, então coordenador do Santa, reconheceu em uma live promovida pelo curso de Jornalismo da FURB em parceria com o Grupo NSC, que tinha a intenção de valorizar a marca Santa, diferentemente do que fora anunciado em 2019. Porém, não foi o que aconteceu…

Jornalismo, cidadania e identidade regional

O jornalismo possui um papel fundamental no desenvolvimento de uma cidade ou região. Em diferentes esferas – social, econômica, cultural e política, desempenha a função de mediação social dos conflitos, interesses, anseios e reivindicações comunitárias. A informação derivada do processo de investigação impacta na dinâmica coletiva, tem efeito direto no cotidiano das pessoas, promove a cidadania.

A prática jornalística voltada para comunidades específicas, recebe diferentes nomes entre pesquisadores do campo, como jornalismo regional, local, de proximidade, de interior ou mesmo comunitário. Caracteriza-se fundamentalmente por uma relação estreita entre mídia e audiências que extrapola a publicação de notícias sobre a localidade. Uma conexão entre mídia e leitores que ocorre devido a uma proximidade gerada por questões culturais e geográficas (AHVA & PANTI, 2014).

Esta proximidade cultural e geográfica entre jornal e audiência desenvolve uma sensação de pertencimento estabelecida com o indivíduo da comunidade abordada. A informação de proximidade constitui uma demanda regional (AGUIAR, 2016; CAMPONEZ, 2012; DORNELLES, 2004; PERUZZO, 2005; FERNANDES, 2013). Se por um lado, a proximidade é considerada positiva, à medida que permite maior interação e conhecimento da realidade vivenciada, também representa um desafio já que as relações de poder são mais intensas, constituindo desafios à prática jornalística nesta esfera. O que reforça a necessidade de um jornalismo independente, de modo que a proximidade de certas instâncias de poder não representem possíveis comprometimentos na cobertura.

A relação do Santa com a comunidade do Vale do Itajaí, especialmente de Blumenau, comprova: a publicação levantou bandeiras e campanhas como a duplicação da BR-470, a defesa do e meio ambiente com destaque ao Rio Itajaí-Açu e o combate a drogas como o crack. É importante reconhecer que, com todas as limitações que encontrava, de ordem financeira ou estrutural, o Santa ocupava um lugar de símbolo da coesão social de toda uma região.

A cobertura jornalística desenvolvida pelo veículo aproximava realidades de um morador do litoral catarinense, por exemplo, a de um cidadão residente no Alto Vale do Itajaí, por exemplo, e vice-versa. Isso se dava inclusive em termos de cobrança de promessas feitas por autoridades públicas, como prevê o jornalismo de qualidade. O fim dos jornais representa um apagamento quando se lança um olhar panorâmico para o que já se construiu em termos de experiências jornalísticas em Santa Catarina.

Se o jornalismo passa por uma crise desde o início do século XXI, especialmente financeira, com as transformações geradas pela revolução das tecnologias de informação e comunicação (TICs), a crise no jornalismo regional é ainda mais profunda. Os jornais locais e regionais possuem maior dificuldade para adaptar-se à internet e rentabilizar nas plataformas digitais (JERÓNIMO, 2015; HINDMAN, 2018). A crise no jornalismo local fez emergir desertos de notícias no interior de países como Estados Unidos e Brasil, comunidades sem acesso a notícias locais, mais vulneráveis à desinformação (ABERNATHY, 2020; JERÓNIMO ET AL, 2022).

No entanto, a crise financeira pode justificar o enxugamento das redações de Santa, AN, e DC, mas não a estratégia empresarial de abandonar as marcas tradicionais por uma única marca unificada para Santa Catarina, no caso o NSC Total. De acordo com Camponez (2017), as armas para enfrentar a crise do jornalismo regional estão em suas próprias características: a proximidade com os leitores e com os demais agentes da sociedade civil. O fortalecimento da identidade regional é a chave para novos modelos de negócios do jornalismo local e a estratégia da NSC segue no sentido oposto.

Para concluir, ressaltamos o fato de Santa Catarina ser um estado onde o interior sempre assumiu um maior protagonismo econômico e cultural. E que o jornalismo regional caminha independentemente da implosão dos seus três maiores jornais. Joinville e Blumenau, primeira e terceira respectivamente no ranking das maiores cidades de SC, estão sem jornal impresso local. Em compensação, cidades médias como Itajaí, Jaraguá do Sul, Brusque e Lages continuam a ter diários. Todas as cidades no entorno de Blumenau possuem ao menos um semanário.

Este novo cenário do jornalismo catarinense, sem uma empresa a monopolizar os maiores centros, deve ser estudado. Assim como os impactos em cidades como Blumenau, onde o modelo de um jornal grande de referência foi substituído por diversos portais de notícias locais, com pequenas estruturas. É preciso analisar se há, de fato, um ganho em uma suposta pluralidade de vozes, ou apenas um enfraquecimento da reportagem em detrimento de notícias curtas, superficiais e releases reelaborados.

Talvez o novo cenário exija repensar a forte dependência do jornalismo catarinense (e por que não, brasileiro) ainda em torno de empresários da comunicação e o tratamento concedido à informação jornalística enquanto mercadoria. Há de se pensar urgentemente o sentido público da necessidade da informação, considerando a preservação do direito à informação assegurado pela Constituição Federal desde 1988. Para que o jornalismo exerça de fato as suas potencialidades em favor das comunidades, cumprindo efetivamente as funções sociais atribuídas a ele, a independência se torna uma obrigação fundamental. Se o acesso à informação é um direito fundamental para o exercício da cidadania, a informação jornalística precisa ser tratada para além do contexto e dos interesses de natureza econômica e mercadológica. Mas, ser guiada, de fato, pelo interesse público, com pluralismo, equilíbrio e diversidade de perspectivas.

Referências:

ABERNATHY, Penelope Muse. News deserts and ghost newspapers: Will local news survive? Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2020.

AGUIAR, Sonia. Territórios do jornalismo: Geografias da mídia local e regional no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2016.

AHVA, Laura.; PANTTI, Mervi. Proximity as a journalistic keyword in the digital era: A study on the “closeness” of amateur news images. Digital Journalism, v. 2, n. 3, p. 322–333, 2014.

CAMPONEZ, Carlos. Jornalismo Regional: proximidade e distanciações. Linhas de relexão sobre uma ética da proximidade do jornalismo. In: CORREIA, João Carlos (Org.). Ágora – Jornalismo de proximidade: limites, desafios e oportunidades. Covilhã: LabCom, 2012. Disponível em: AQUI

CAMPONEZ, Carlos. Proposta de novos pactos comunicacionais na era do hiperlocal. Em: JERÓNIMO, P. (Ed.). Media e jornalismo de proximidade na era digital. Covilhã: Editora LabCom.IFP, 2017. p. 11–26.

DORNELLES, Beatriz. Jornalismo comunitário em cidades do interior: uma radiograia das empresas jornalísticas: administração, comercialização, edição e opinião dos leitores. Porto Alegre: Sagra Suzzato, 2004.

FERNANDES, Mario Luiz. A proximidade como valor-notícia na imprensa do interior. In: ASSIS, Francisco de (Org.). Imprensa do interior: conceitos e contextos. Chapecó: Argos Editora Unochapecó, 2013.

HINDMAN, Matthew. The Internet trap: How the digital economy builds monopolies and undermines democracy. Chapel Hill: Princeton University Press, 2018.

JERÓNIMO, Pedro. Ciberjornalismo de proximidade. Covilhã: Labcom.IFP, 2015.

JERÓNIMO, Pedro; RAMOS, Giovanni; TORRE, Luísa. Desertos de Notícias Europa 2022 Relatório de Portugal. Covilhã: Editora Labcom. Disponível em: <https://labcomca.ubi.pt/wp-content/uploads/2023/02/desertos_noticias_europa_2022_.pdf&gt ;. Acesso em: 22 dez. 2022.

MOSER, Magali. Tornar o “Santa frágil” é uma forma de fazê-lo desaparecer? ObjETHOS. Disponível em: https://objethos.wordpress.com/2017/11/12/ponto-de-vista-tornar-o-santa-fragil-e-uma-forma-de-faze-lo-desaparecer/ Acesso em: junh/2023.

PERUZZO, Cicilia Maria Krohling (2005). Mídia regional e local: aspectos conceituais  e tendências. Comunicação & Sociedade, 1(38), 67–84. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CSO/article/view/8637/0 Acesso em jun/2023.

RAMOS, Giovanni. Jornal impresso: desinteresse de quem? Gioramos.net. Disponível em: https://gioramos.net/blog/jornal-impresso-desinteresse-de-quem/ Acesso em jun/2023.

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Reportagem publicada originalmente em objETHOS

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Giovanni Ramos é Doutorando em Comunicação e pesquisador do LabCom da Universidade da Beira Interior

Magali Moser é Professora de Mídia Regional no curso de Jornalismo da FURB e doutora em Jornalismo/UFSC

(*ambos trabalharam como repórteres na redação do Jornal de Santa Catarina, em Blumenau, nos anos 2000)