Alguns pesquisadores do jornalismo já caracterizaram a profissão como a busca permanente da convergência entre uma necessidade concreta e uma impossibilidade teórica. O centro deste dilema é a questão da objetividade na produção de notícias jornalísticas, um tema que já foi um dogma na profissão, mas que hoje está sendo cada vez mais questionado nas redações e fora delas.
O avanço da ciência mostrou que não existe a objetividade absoluta por dois grandes motivos bem concretos: a avalanche informativa e o avanço das ciências da cognição. A avalanche de notícias na internet multiplicou o número de versões sobre um mesmo dado, fato ou evento, ampliando os questionamentos sobre o que é 100% verdade ou 100% mentira. Já as ciências da cognição produziram novos e sofisticados conhecimentos sobre como os seres humanos percebem o mundo que os cerca. Tudo o que sabemos foi capturado pelos nossos cinco sentidos e cada pessoa percebe o mundo ao seu redor conforme sua cultura, grau de informação, nível econômico, posição social ou estado emocional.
Tudo isto está minando a concepção de objetividade absoluta fundamentada em normas pré-estabelecidas. No caso do jornalismo tradicional, uma notícia considerada objetiva quando atendia às regras contidas nos manuais de redação ou estava apoiada no parecer de alguma fonte era vista como insuspeita. Mas depois da avalanche informativa, a preocupação em separar o joio do trigo levou à necessidade de explorar o maior número possível de relações do objeto da notícia ou reportagem com o meio físico, cultural, econômico, político e social em que ele está inserido.
O crescimento vertiginoso das redes sociais na internet contribuiu ainda mais para o questionamento da objetividade informativa com a multiplicação de desencontros entre postagens de internautas. Tornou-se comum dizer que nas redes cada frase ou palavra pode ser interpretada de forma diferente, dando margem a mal-entendidos e conflitos. Alguns tentam, de forma simplista, criminalizar as redes ignorando o fato de que o excesso de versões possíveis para um mesmo fato impõe a necessidade de maior contextualização de tudo aquilo que está sendo dito, lido ou visto na internet.
Objetividade relativa ou por aproximação
Como a diversidade de abordagens de um mesmo dado, fato ou evento é muitas vezes maior do que os nossos conhecimentos, recursos financeiros e tempo disponível para identificá-las, nós os jornalistas, estamos sendo forçados a utilizar a chamada objetividade por aproximação. Trata-se de um recurso em que a objetividade é relativizada por comparação com algum outro parâmetro ou pela sua caracterização como algo incompleto e parcial. O leitor, ouvinte ou telespectador precisa saber que o que está sendo dito ou mostrado não é a verdade absoluta.
A busca jornalística pela objetividade inevitavelmente leva os profissionais a terem que dar maior prioridade à pesquisa da realidade, preocupação particularmente importante em áreas como política e economia, onde a diversidade de posicionamentos e de perspectivas pode ser enorme. Atualmente, o jornalismo se apoia mais nas declarações de políticos, economistas e empresários do que nos dados e fatos em evidência. Resultado, o noticiário geralmente confunde mais do que esclarece o público porque o debate envolve mais opiniões do que realidades. Um mesmo fato pode ter centenas de opiniões diferentes, o que desorienta as pessoas e as afasta dos temas em discussão.
A Universidade enfrenta o mesmo dilema da complexidade e diversidade dos dados e fatos na pesquisa acadêmica, mas o problema começa a ser enfrentado através da ampliação do uso da chamada Teoria de Prática, que prioriza a observação da realidade dedicando preocupação máxima à eliminação de ideias pré-concebidas ou previamente estabelecidas. Trata-se de um desdobramento do materialismo dialético de Karl Marx, modernizada no século XX pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu e que agora está sendo aplicada ao jornalismo por pesquisadores como o inglês Nick Couldry, da London School of Economics e a finlandesa Laura Ahva , da Universidade Tempere.
Investigar e redigir uma notícia, levando em conta a objetividade por aproximação, exigirá dos profissionais uma pesquisa muito mais detalhada dos fatos pois será necessário ampliar a diversificação das fontes e a observação direta. A regra de ouvir os dois lados não é mais suficiente para cobrir a multiplicidade de percepções possíveis sobre um mesmo dado ou evento. Assim, os repórteres gastarão muito mais tempo para produzir uma reportagem, deixando em segundo plano a obsessão em ser o primeiro a dar uma notícia. Todo um modo de produção jornalística acabará sendo alterado, para adotar o que alguns ´passaram a chamar de jornalismo sistêmico: aquele que se preocupa mais com ver os fatos de forma holística, ou seja, dentro de um sistema e não como algo isolado.
Para mais detalhes:
– The objectivity norm in American Journalism – de Michael Schudson – Universidade da California – San Diego – artigo
– Journalistic Power: Constructing the “Truth” and the Economics of Objectivity – Gino Canella – artigo
– The Contradictions of Journalistic Objectivity por James Geary – artigo
– Beyond Objectivity – de Leonard Downie Jr. e Andrew Heyward – ebook download grátis
– Theorising Media as Practice – Nick Couldry – artigo
– Practice Theory for Journalism Studies – Laura Ahva – artigo
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Carlos Castilho é é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.