Este texto nasce com um objetivo claro, que será possível identificar no decorrer da leitura. Se esse propósito não for evidente, talvez a caminhada terá sido em vão. Isto porque um bom texto, seja na filosofia ou seja no jornalismo – tanto como em outras áreas –, consiste na sua capacidade de ser escrito de forma compreensível ao grande público.
Aqui não nos interessa apenas a estrutura textual, mas aquilo que podemos chamar de seu esquema conceitual – parafraseando P. F. Strawson –, que se materializa pelo uso da palavra. Se o jornalista é, em algum nível de análise, um usuário da linguagem especializada e da comum, nada mais justo que iniciar a nossa reflexão nesta instância da profissão. Isto porque, na prática diária da informação, o jornalista cumpre seu papel hermenêutico sem dar-se conta disso.
Na Grécia mitológica, o deus dos ladrões é o mesmo deus que protege as estradas, a linguagem, a magia e a diplomacia. Ao ser tudo isso, ainda é o mensageiro dos deuses – o quê o torna a figura mitológica do jornalismo. Aqui entra a tarefa hermenêutica que inspira às(aos) profissionais da imprensa. O texto não analisa a fundo a filosofia presente no mito de Hermes, o patrono grego da Comunicação, mas resgata dois aspectos desse deus que se relacionam diretamente à produção de notícias: a sua hermenêutica, ou seja, sua capacidade de traduzir mensagens, e a sua renúncia ao Olimpo para ficar junto à humanidade.
Convencionamos que o texto jornalístico de qualidade é aquele que, ao ler, é facilmente interpretado sem a necessidade de amparo de outras fontes. Isto é, uma notícia por si deve ser suficiente para que a leitora, ou o leitor, compreenda o acontecimento e como isso se relaciona com o seu cotidiano. Mas o acontecimento jornalístico, como coloca Adelmo Genro Filho, não se dá de forma isolada. Ele é um acontecimento que se manifesta em um universal e que se cristaliza no singular.
É dever da(o) jornalista, utilizar a sua profissão e as suas técnicas para traduzir esse acontecimento e o transformar em singular. Não apenas traduzir, mas conseguir atender à tarefa hermética de inseri-lo em um universal compreensível – ou revolucionário. Para a mitologia, Hermes era capaz disso. Deuses e humanidade não falam a mesma língua – ambas são especializadas em determinados contextos, ou seja, desempenham papéis próprios com públicos específicos. Hermes, sendo o mensageiro entre os dois mundos, era quem fazia essa tradução – daí o nome do método de pesquisa e de interpretação chamado de hermenêutica.
O mito lembra aquilo que, por vezes, as(os) profissionais de mídia esquecem. Dizer que as mudanças climáticas afetarão a disponibilidade de alimentos no mundo não é tornar um acontecimento singular em compreensível. Tampouco é suficiente afirmar que o reajuste dos preços pelos mercados internacionais, que usam o dólar americano como moeda, é necessário para evitar o desabastecimento interno, como o Observatório da Imprensa já lembrou em outro texto. Isso é pegar os discursos dos deuses e replicá-los à humanidade sem traduzir.
Ser jornalista é, por exemplo e à sombra de Hermes, ter a capacidade de explicar como a aprovação de uma lei que permite o represamento de pequenos cursos d’água, torna-se singular ao ser um acontecimento manifestado em um universal dado – isto é, o Brasil no qual agro-empresários e latifundiários interferem na política. Talvez, isso não seja claro o suficiente aqui, por isso façamos um esforço um pouco mais hermenêutico.
Aprovado em 2021 pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara dos deputados, o Projeto de Lei (PL) N.º 2.294/19, de autoria do deputado federal bolsonarista Zé Vitor (PL/MG), permite o represamento de pequenos cursos d’água quando voltados à irrigação e à criação de animais. Isto é um acontecimento singular – ele aconteceu imediatamente e, portanto, não se manifestará novamente na mesma condição espaço-temporal que foi materializado. Ao observar esse acontecimento, cabe a imprensa não reduzir isso a um fenômeno particular.
Como herdeiras(os) do mito grego, é dever jornalístico tornar isso compreensivo por meio de uma notícia que traga os motivos que permitiram esse acontecimento se manifestar – o universal que condiciona a aprovação das leis, ou seja, a força do agronegócio, a influência de determinados grupos dominantes e o contexto climático que, em um primeiro momento, torna esse acontecimento como óbvio e necessário. Estes elementos, nos termos de Adelmo Genro Filho, são o universal.
Colocar, além disso, as consequências não evidentes. O represamento, de fato, contribuirá para a melhora da produção agrícola. Mas também tornará as comunidades mais suscetíveis ao êxodo rural e à dependência de grandes produtores. A lei beneficia os animais que vivem em regiões com grandes oscilações hídricas, mas também possibilita a modificação de ecossistemas que terão a oferta de água reduzida ou ampliada de forma artificial.
Traduzir a mensagem dos deuses – escrita em um linguajar técnico, não acessível e com termos complexos – em uma mensagem interpretável pela humanidade – com termos usuais, acessíveis e não tecido com uma tecnicidade excessiva. Hermes fazia isso, o jornalismo deve fazer isso. Isso nos leva ao segundo aspecto desse deus que tanto interessa a uma filosofia do jornalismo.
Hermes, conforme a mitologia, vivia junto à humanidade. Ele preferia estar ao lado dos acontecimentos humanos ao permanecer no monte Olimpo. Os próprios deuses sabiam disso, como registrou Homero na Ilíada. Depois da tradução dos acontecimentos, esse é o papel mais importante que o jornalismo deve resgatar em Hermes. A sua propensão, atitude e decisão de estar ao lado da humanidade. Escolher, ante ao Olimpo, permanecer na sociedade como fonte primária de escuta, de observação e de comunicação.
Escolher o lado social não é renegar, todavia e por completo, as instâncias que naturalizamos como sendo superiores ao corpo social. Trata-se de uma escolha por compreender um outro universal, uma possibilidade de prática noticiosa que esteja atenta às relações entre humanos, entre ambientes e entre mundos. Fazer uma escolha hermenêutica, traduzir mensagens e permanecer junto à sociedade, devem figurar os propósitos do jornalismo.
A filosofia antiga apontava isso, a teoria jornalística contemporânea traz isso. Os mitológicos gregos e a proposta de teoria de Adelmo Genro Filho convergem para elementos similares. Assim como a prática jornalística de Albert Camus o levou a ver Sísifo feliz e permitiu que Antonio Gramsci identificasse que os sintomas mórbidos são prenúncio de uma outra realidade, também o mito pode servir para a reflexão da filosofia por trás do jornalismo. Isso não encerra nossa proposta, mas encerra o texto.
Porque a filosofia e a prática do jornalismo não se encontram distantes. Sufocados pela técnica e pelo tempo, esquecemos que ler filósofos que foram jornalistas mostra-nos que é possível – e fundamental – pensar a sociedade em uma filosofia da comunicação. O jornalismo, quando lido por filósofas(os), também fomenta reflexões sobre a sociedade. Resgatar um jornalismo filosófico e uma filosofia jornalística, um esforço hermenêutico que o texto se propõe a incentivar.
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Wellington Felipe Hack é bacharel em Jornalismo e acadêmico de Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (RS).