Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Os cínicos não servem para este ofício

(Foto: Rudy and Peter Skitterians por Pixabay)

Não se pode ser um bom jornalista sendo um cínico. O cinismo é uma atitude inumana que nos distancia automaticamente do ofício de jornalista.

Esta é uma das tantas lições que o leitor aprende ao ler o livro “Os cínicos não servem para este ofício – sobre o bom Jornalismo”, do jornalista polonês Ryszard Kapuściński.

Kapuściński esteve em várias das revoluções independentistas de países da África, nos anos 1960 e 1970, sempre na linha de frente, falando com as pessoas, entrando em fronteiras fechadas, em territórios hostis, campos de concentração de palestinos expulsos por colonizadores israelenses.

Cobriu 27 golpes de estado e revoluções, foi capturado 40 vezes por grupos rebeldes e condenado à morte por quatro vezes, livrando-se de todas elas. Morreu em casa, em 2007.

Adepto de uma “observação participativa”, o que também pode ser conhecido como “jornalismo de imersão”, privilegiou o contato com o sofrimento do povo local em zonas de guerra e de conflitos.

O que deveria ensinar aos jornalistas, especialmente aos brasileiros sentados em estúdios internacionais, que o comentarista e/ou correspondente de agências/meios precisam compreender primeiro a realidade da vida dos nativos.

O contexto real das guerras e as invasões arbitrárias sofridas durante décadas, com anuência das Nações Unidas e do Sistema Midiático Internacional, antes de escrever ou dizer qualquer barbaridade cheia de preconcepções e racismo.

Para ele, o trabalho do jornalista sério consiste em contar a história enquanto ela acontece. Por mais que as decisões palacianas sejam o que marcam a História, é no Jornalismo que a ação e a vivência do povo contam a verdade.

E Kapuściński mais que entrevistar generais e chefes de Estado, o que ele mais fez foi ouvir o povo, sentir e contar sua dor, seus medos e toda injustiça que sofre, o que o autor conceituou como um princípio psicológico conhecido como “empatia”.

Assim, o jornalista não pode ser alguém que despreza a dor do povo sobre quem escreve e comenta.

A responsabilidade social do Jornalismo e de seus comentaristas

Ao Jornalismo profissional, quando iniciada a fase da responsabilidade social, foi dada a missão de proteger os cidadãos do abuso dos Poderes Constituídos.

A essa missão alguns teóricos chamaram de “o quarto poder”. Porém, engana-se que seja para exercê-lo. O quarto poder era o ideal da proteção da sociedade contra a tirania estatal feita pelos meios de comunicação.

Logo, conferida a liberdade de imprensa por lei e regulamentos, esta é um direito coletivo que os meios e jornalistas têm a obrigação de utilizar para vigiar os poderes do Estado e defender a sociedade.

Entretanto, quando o Jornalismo se alia a massacres, defende bombardeio, extermínio de raças, morte de crianças palestinas e destruição de hospitais com malabarismos cínicos em rede de notícias 24h, ele perde sua justificativa de existir.

E aqui entra justamente a maior lição de Kapuściński: os cínicos não servem para este ofício.

Porque um cínico não tem humanidade de enxergar a realidade além dos seus interesses e da defesa de um grupo ou de um estado alheio.

Chamar o massacre de Israel na Faixa de Gaza e Cisjordânia há décadas, com a gravidade dos ataques atuais, de “guerra” é cinismo. 

Além de manipulação e a defesa internacional de um governo de extrema-direita sionista, que de acordo com a Resolução da Assembleia-Geral da ONU 3379, de 1975, já foi considerado uma forma de racismo.

O Brasil, em plena ditadura militar, votou a favor da Resolução, que em 1991 foi revogada como condição para Israel iniciar as negociações do Acordo de Oslo.

Sem efetivação, a partir de então violar cada vez mais profundamente Convenções de Direitos Humanos, Tratados Internacionais e cometer crimes de apartheid e contra a humanidade.

Revisitando a obra de Kapuściński podemos associá-la com a obra do jornalista e escritor Vassili Grossman, principalmente em seu livro “Um escritor na Guerra”.

Série de reportagens e testemunhos durante a Segunda Guerra Mundial, alguns dos textos de Grossman, como “O inferno chamado Treblinka”, serviram de provas no Tribunal de Nuremberg contra os nazistas, por crimes contra a humanidade, como isolar uma raça em guetos, forçar uma marcha para outro país e exterminar milhões no caminho.

Exatamente como estamos vendo ao vivo atualmente na TV, por onde comentaristas defendem o extermínio de um outro povo: o palestino.

Não se pode aceitar o genocídio de nem uma raça sob qualquer justificativa. Muito menos ser jornalista e defender o abuso de poder e a falta de limites de um Estado que com sua sanha imperial pode levar o mundo a um conflito generalizado.

O cinismo como característica do sistema midiático

Assim sendo, os meios de comunicação têm agido como porta-vozes de Israel no Brasil e em diversos países, justificando os assassinatos de palestinos, na maioria de mulheres e crianças, e aceitando, sem noticiar, o assassinato sistemático de mais de 120 jornalistas pelas forças israelenses.

No Brasil, as organizações sionistas como a Conib agem para censurar e ameaçar judicialmente vozes opositoras, como a do jornalista judeu Breno Altman, por criticar o genocídio palestino pelo estado israelense.

Com o agravante de o Ministério Público Federal e a Polícia Federal abrirem investigação contra Altman por criticar um governo estrangeiro, em mais um exemplo à brasileira de lawfare, sob o silêncio moderado da grande mídia.

O cinismo midiático brasileiro também está quando os jornalões, lembrando Alberto Dines, deste Observatório, pedem anistia para os “cidadãos” que atentaram contra o Estado Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2023, destruindo Brasília e o patrimônio público.

E que trata homem branco, morador dos Jardins (SP), que mata policial na porta de casa como “empresário” e não “assassino”.

Quase finalizando, “cinismo” é substantivo masculino e é a atitude “de quem demonstra desprezo pelas normas sociais ou pela moral estabelecida; atrevimento, descaramento, despudor”.

Por isso, um cínico não deveria ser jornalista. Mas é! E muitos deles estão servindo de referência aos estudantes de Jornalismo.

 

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Bruno H. B. Rebouças é jornalista, pesquisador e membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade – JDL – USP