Em 1972 (século passado, portanto), quando iniciei meu primeiro emprego com carteira assinada, como redator no jornal O Estado, de Florianópolis, já se falava na desnecessidade do diploma de jornalismo. Quando avisei, no ano seguinte, que iria sair do jornal para fazer um curso de… jornalismo em Porto Alegre, foi um espanto geral. “Como assim?”
Querer um diploma estando empregado como jornalista não fazia, de fato, sentido. Afinal, pra que serve um diploma senão para usufruir da reserva de mercado?
Quando, em 1978, já formado, com o diploma emoldurado na parede, fui convidado por Moacir Pereira (advogado com diploma e jornalista sem diploma) para fazer parte da comissão que criou o Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), comecei a participar mais intensamente do debate, bem acalorado, em que muitos asseguravam a inutilidade de um curso de jornalismo que dotasse seus alunos e alunas de um diploma desnecessário.
Tenho, então, ao longo de toda a minha cinquentenária carreira de jornalista, convivido permanentemente com essa pendenga: o diploma é uma bobagem e o jornalista um diletante que não precisa estudar para exercer a “profissão”.
Vivi para ver a pressão das empresas (jornalísticas!!!) resultar numa decisão inacreditável do Supremo Tribunal Federal, que na sessão do dia 17 de junho de 2009 derrubou a exigência do diploma. O que se seguiu foi uma barafunda de interpretações sobre o que, dentre as regulamentações do trabalho jornalístico teria também sido extinto ou modificado.
O fato é que, a critério das empresas, qualquer pessoa, mesmo que não saiba ler ou escrever, pode ser contratada como jornalista. Sequer o diploma do curso fundamental é necessário.
O fascínio pelos holofotes
No fundo desse aparente demérito que se expressa com a campanha contra a regulamentação da profissão e o diploma correspondente (ou correndo paralelamente a ele) está, paradoxalmente, uma espécie de fascínio que o jornalismo exerce. O crítico do diploma, não raro, sonha ser jornalista e ter aquele prestígio que a mitologia popular atribui a quem escreve em jornais, aparece na TV ou tem programas de rádio.
A votação que candidatos jornalistas e radialistas obtém nas eleições é uma prova da admiração que muitos têm por esses profissionais. Que muitas vezes nada mais fizeram do que exercer (e nem sempre com competência) o ofício de jornalista, ou funções assemelhadas. Para muitos, o apresentador de noticiários, mesmo sem ter participado da elaboração jornalística do que lê, é considerado jornalista. Ter o nome impresso e o rosto e a voz reconhecidos, os eleva a um outro patamar no imaginário popular.
Esse é o motivo pelo qual apresentadores e apresentadoras de noticiário de TV ganham uns trocados posando de “mestres de cerimônia” em reuniões, congressos e outros eventos. E quem os contrata sabe que esse pessoal “da mídia” agrega valor ao espetáculo.
Mais facil que fritar um ovo
Outro ponto igualmente desconcertante é a constatação de que “todo mundo” se acha capaz de fazer o que os jornalistas fazem. “Todo mundo” entende de comunicação, sabe o que é notícia e acha que consegue fazer mais e melhor do que os que atuam profissionalmente. O diploma, então, parece mesmo ser desnecessário. E as escolas de Jornalismo, inúteis.
O que se lê nas redes sociais, mídia acessível e barata, onde qualquer um pode ser “jornalista”, demonstra que a maioria confunde opinião com informação e compartilha barbaridades como se coisa séria fosse, crentes que estão prestando um serviço “jornalístico” para o bem da humanidade.
O voto do ministro Gilmar Mendes, na seção do STF que derrubou o diploma, não podia ser mais esclarecedor da forma como uma parcela da população vê o jornalismo e o jornalista: “Um excelente chefe de cozinha poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima estarmos a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área”.
Não vou cair nessa armadilha de comparar alhos com bugalhos. O ministro provavelmente quis, com essa simplificação rudimentar, desviar o foco e justificar, acentuando uma irrelevância retórica, a derrubada do diploma. E, como ele conhece muito bem os jornalistas, fornecer uma boa frase para ser usada numa chamada ou num olho. Porque dentre nós há muitos cozinheiros que se satisfazem com “umas aspas”, alguma declaração que complete o espaço e os livre de ter que exercer com alguma perícia, ou esforço, sua profissão.
Sim, dentre nós há quem forneça, com seu desinteresse, sua falta de ética e sua preguiça, justificativa não só para a inutilidade do diploma, como para a desimportância dessa profissão. Mas não é disso que se trata. É justamente o oposto disso: trata-se de garantir condições mínimas para que a população tenha seu direito à informação de qualidade assegurado.
Derrubar o diploma e bagunçar a profissão, justamente num período em que a crise de financiamento do jornalismo causa enormes danos (com a precarização do exercício profissional decorrente do “enxugamento” das equipes) não trouxe nenhum benefício visível.
Quer dizer, trouxe grandes benefícios para aquele setor que tem substituído os jornalistas na tarefa de alimentar os veículos com informação: as assessorias de imprensa e relações públicas. Em 2022, demonstra o levantamento feito pelo portal Poder 360, agências de RP e assessoria tiveram faturamento bruto anual acima de R$ 4,8 bilhões. A principal agência (Grupo FSB) teve um aumento de faturamento de 36,3% em relação a 2021. As duas maiores agências (FSB e InPress) têm, juntas, 1.402 funcionários e 762 clientes. Não existe nenhuma empresa jornalística, no país, cujos números cheguem perto.
Muito do que se lê, vê e ouve em portais jornalísticos, nas diversas plataformas (aí incluídas rádio e TV abertas e jornais impressos), é produzido por agências de RP e assessoria. As equipes de jornalismo, raquíticas, sobrecarregadas, mal administradas e mal pagas, certamente até agradecem essa “colaboração desinteressada”. O público acaba tendo acesso a uma informação de má qualidade (no sentido dos interesses envolvidos e do comprometimento das fontes), mas nem se dá conta disso porque a embalagem, em geral, é no melhor papel de presente disponível no mercado, com laço de fita e tudo.
Desvalorizar o diploma, menosprezar as escolas, ridicularizar quem critica a mídia e reduzir o jornalismo e os jornalistas a papagaios de declarações alheias, parece ser um projeto. Cujo principal objetivo é mesmo impedir que a população tenha acesso a uma informação minimamente independente. E garantir que as “autoridades” da hora não sejam perturbadas por divulgações não autorizadas de seus malfeitos, das mãos nos baleiros e da festinha que às vezes ocorre debaixo dos panos. O jornalismo, de fato, precisa ser nocauteado (neutralizado, para usar uma terminologia mais adequada). E os jornalistas, transformados em assessores de imprensa e relações públicas. Se isso não for feito, vão continuar incomodando e atrapalhando.
Texto publicado originalmente em objETHOS
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Cesar Valente é jornalista, mestrando em Jornalismo e pesquisador do objETHOS