Dia desses, me deparei com um texto que começa muito divertido, mas logo descamba para a tristeza inevitável que vem quando penso sobre o mercado de trabalho atual do jornalismo — tema que me pareceu de bom tom aproveitar hoje, no Dia do Trabalhador. Intitulado “So you wanna be a journalist?” (Então você quer ser jornalista?), o ensaio foi publicado, em 2018, na Columbia Journalism Review pelo editor-chefe da publicação, Kyle Pope. Assim como Pope em seu texto, também fiquei lembrando as razões pelas quais decidi, com dez anos de idade, que ia ser jornalista. Gostava muito da ideia de viajar pelo mundo, como fez Glória Maria, conhecer outras culturas, experimentar comidas diferentes. Tudo parecia muito glamoroso e divertido.
Talvez, hoje, o cenário não seja mais o mesmo, com toda a fragmentação da mídia; mas, quando eu era criança — e muitos dos meus colegas da época de graduação também —, a imagem que tínhamos do que significava ser um jornalista era o que nós víamos na televisão, especialmente em programas semanais como o Fantástico ou o Globo Repórter. Não que os jornalistas não façam coisas incríveis de vez em quando, mas, aos poucos, nós descobrimos que a prática é muito diferente.
Os anos de faculdade e o primeiro emprego em uma redação de um jornal diário que estava migrando para uma política “digital first” mostraram que a rotina não é bem o que se imagina quando não se trabalha com jornalismo. Os filmes e séries também enfeitam muito a profissão: os de teor mais investigativo transformam o jornalista quase em super-herói, e as comédias românticas, muito povoadas por jovens repórteres de revistas de moda, fazem parecer que o dia a dia é apenas ver desfiles em passarelas e entrevistar grandes estilistas. Claro, acreditar que isso é a realidade é muito ingênuo — mas diga isso para uma adolescente que botou na cabeça que iria ser jornalista?!
Brincadeiras à parte, chego ao primeiro ponto deste texto: a rotina de trabalho. No último 7 de abril, comemoramos (comemoramos?) o Dia do Jornalista e uma amiga minha, também jornalista, pontuou em seu Twitter um detalhe que achei bastante curioso: enquanto colegas que atuam em redações impressas e/ou online compartilhavam postagens de perfis como o da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), exigindo direitos e condições de trabalho, muitos dos que atuam em televisão traziam imagens de si mesmos com atores de Hollywood, globais, cantores e personalidades que entrevistaram. De forma alguma isso é um ataque aos colegas do audiovisual; é apenas algo que me chamou a atenção para o quanto a profissão, mesmo que precarizada, ainda carrega, em certos aspectos, um ar de glamour que não condiz com a rotina da maioria dos profissionais.
Segundo dados da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), os ataques contra jornalistas cresceram 23% em 2022: foram 557 episódios, dos quais 145 apresentaram traços explícitos de violência de gênero e/ou vitimaram mulheres jornalistas. Casos em que houve agressão física, intimidação, ameaças e/ou destruição de equipamentos somam 31,2% do total, o que representa um crescimento de 102,3% em relação ao ano anterior. Esse outro lado da profissão está muito bem registrado no dossiê Ataques ao Jornalismo e ao seu Direito à Informação, publicado em 2022 por nós, do objETHOS, em parceria com a FENAJ: uma profissão que, em muitos casos, é vista com “lentes cor de rosa”, vem se tornando cada vez mais uma atividade de risco, com crescente sensação de insegurança e casos de violência verbal, física, de gênero, entre outras.
Além disso, como mostra a pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro, é uma profissão que paga pouco: mesmo com formação elevada — muitos profissionais possuem graduação (42,3%), que não é exigida no Brasil para atuar na área, e também especialização (28,6%) ou mestrado (14,7%) —, a renda mensal de 60% dos entrevistados para a edição de 2021 da pesquisa é inferior a R$ 5,5 mil por mês, e apenas 12% recebem acima de R$ 11 mil. O levantamento mostra também que a precarização é uma crescente: em comparação com a edição anterior, de 2012, o volume de vínculos CLT caiu de 60% para 45,8%, e vínculos trabalhistas do tipo freelancer, MEI, PJ e prestação se serviços sem contrato chegam a 24%.
Outro aspecto abordado pela pesquisa é a saúde mental dos profissionais: 66,2% se sentem estressados no trabalho, 34,1% já foram diagnosticados com estresse, 31,4% receberam a indicação para tomar medicamentos antidepressivos e 20,1% já receberam o diagnóstico de algum transtorno mental relacionado ao trabalho. Não por coincidência, 71,5% trabalham mais horas do que o definido por contrato e 55,8% não sentem que seus esforços são reconhecidos.
Todos esses dados sobre o cenário brasileiro não mostram nada muito diferente do que Pope escreveu em 2018 sobre o mercado de trabalho do jornalismo nos Estados Unidos: “Salários terríveis para repórteres, escassez de empregos e até mesmo um estigma social em alguns círculos que filtraram o negócio a tal ponto que a maioria dos jornalistas que conheço – e especialmente os jovens que tentam entrar no campo – estão aqui porque querem desesperadamente estar aqui e não conseguem se imaginar em outro lugar. Eles estão exatamente onde eu estava, quatro décadas atrás” (tradução minha).
Esse é um tema que o pesquisador Dairan Paul abordou muito bem em seu texto “O custo emocional de ser jornalista”, publicado neste site no ano passado: “É como uma compensação moral – o trabalho, mesmo que realizado em meio ao caos, ainda seria nobre por excelência, remetendo ao velho romantismo da profissão. O problema é que o amor pelo jornalismo tem prazo de validade: quando as contas não fecham, não há paixão que resista”.
Salários baixos, longas horas, ausência de um Conselho Federal que cobre a responsabilidade dos profissionais quando não cumprirem com a ética – tema tratado pela pesquisadora Raphaelle Batista, também neste site e também em 2022 –, redução nas equipes, jornalistas multifunção, mas nunca “multi salários”, como diz o professor Samuel Lima, coordenador do objETHOS, nas nossas aulas de Teoria do Jornalismo… tudo isso impacta no trabalho dos jornalistas e, consequentemente, na qualidade do produto final. Digo “produto” pois, no sistema capitalista, as notícias são um produto que as organizações jornalísticas querem vender. Em um mundo cada vez mais orientado ao digital first, a obrigação do furo, muitas vezes, faz com que se publiquem informações incompletas, mal apuradas, reproduções de falas de fontes oficiais. Um jornalismo declaratório, sem construção crítica, é fruto também da precarização da profissão, da correria das redações, da falta de tempo para que se trabalhe com qualidade.
Como escreve o pesquisador Dennis Ruellan no artigo “Um ser profissional ou como percebê-lo”, publicado em 2017 no periódico Brazilian Journalism Review, um jornalista não existe sozinho: “Ele existe por meio de suas relações, com seus colegas e patrões, com suas fontes, com os receptores de seu veículo. Ele existe também pela cultura (os valores, as normas, as rotinas) que lhe foi prescrita durante sua formação e ao longo de sua vida como trabalhador (DUBAR, 1991). Essa cultura é também adquirida, pois o jornalista trabalha em sua fabricação, ele a constrói junto com os demais”. O cotidiano de trabalho atravessa o profissional assim como suas próprias subjetividades e bagagens pessoais. O mimetismo, já diziam Charron e de Bonville, no livro Natureza e Transformação do Jornalismo (2016), é uma das principais formas pelas quais um “foca” aprende a se portar como jornalista. E com quem os novatos e recém-formados vão aprender se as empresas mandam embora profissionais com anos de casa, como fez a Globo no mês passado?
Em condições precárias de trabalho, não são só a saúde física e mental dos profissionais que estão em jogo. A credibilidade dos veículos, bem como a confiança que o público deposita neles, também acabam sendo diretamente impactadas. Este primeiro de maio, Dia do Trabalhador, é um momento oportuno para pensar sobre o custo emocional que a profissão nos cobra, mas também o que ele causa. Existe algum glamour em ser maltratado por um chefe de Estado, em ganhar pouco, em trabalhar muito além do contratado? Por acaso é bonito precisar publicar notícia pela metade, pois não há tempo para verificar a informação com o cuidado necessário? E transformar um título em um mero clickbait para tentar “domar” o algoritmo e angariar algumas migalhas de visualização nas redes sociais, será que algum profissional sério acha isso uma boa ideia? Quando jornalistas são alocados em cercadinhos, quando recebem ataques de todos os lados por simplesmente estarem tentando fazer seu trabalho, fica muito, muito difícil fazer jornalismo de qualidade.
Dizer que é preciso repensar estruturas, redefinir procedimentos padrão e modificar rotinas de trabalho pode ser chover no molhado. Claro, é difícil encontrar respostas para questões tão profundas, mas é urgente que as organizações jornalísticas compreendam que, sem seus profissionais, elas não são capazes de fazer jornalismo. Podem colocar no ar ou nas ruas algo que se parece com jornalismo, tem cara de notícia, mas, em essência, não o é. E, quando algo que parece notícia, mas não é, começa a circular… os últimos anos já mostraram o tamanho do problema que se apresenta às sociedades que se pretendem democráticas.
Texto publicado originalmente no objETHOS
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Natália Huf é Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS