Quem busca entender o que se passa na faixa de Gaza desde 7 de outubro de 2023 através do noticiário do Jornal Nacional, da Globo News, e dos (ainda) grandes jornais das capitais brasileiras se depara com um cenário digno de filmes da Marvel. Logo de cara, o distinto público já percebe quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Os mocinhos têm nome, sobrenome, família e só desejam viver em paz. Já os bandidos são os feios, sujos e malvados de sempre, que têm na cabeça uma ideia fixa: matar, matar e matar. O título do hipotético filme da Marvel poderia ser A guerra entre Israel e o Hamas. A ficção começa aqui.
Com a trama montada, o que se vê em sequência é a incessante tentativa dos bonzinhos em impedir que os malvados façam a única coisa que sabem: matar, matar e matar! Desnecessário dizer que eles não têm nome, sobrenome e nem famílias.
Essa maneira quase ficcional de se apresentarem realidades complexas para amplos públicos, esvaziando sofrimentos e tragédias de seu significado mais profundo e infantilizando disputas é uma das múltiplas formas de se manipular o noticiário internacional com propósitos definidos. O objetivo sempre é legitimar genocídios e limpezas étnicas.
Francisco Fernandes Ladeira escreveu seu consistente e necessário A ideologia dos noticiários internacionais bem antes das últimas investidas sangrentas do autodenominado Estado judeu contra os palestinos. Mas seu livro nos ajuda a compreender a construção e a serventia das realidades paralelas repetidas até a náusea pela mídia brasileira. Suas palavras são cortantes:
“Os principais veículos de comunicação recorrem ao que poderemos chamar de “atalhos cognitivos”, que nada mais são do que simplificações para gerar uma espécie de segurança hermenêutica para o receptor de uma determinada mensagem. Entre esses ‘atalhos cognitivos’ estão as personalizações, tipificações, maniqueísmos e lugares-comuns”.
Nada é mais lugar-comum no jornalismo do que beatificar aliados e bestializar oponentes. Para justificar o genocídio palestino recente, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Galan, os chama de “animais”. A cobertura midiática parece desenhar a frase. São as tipificações, maniqueísmos e lugares comuns de que nos fala Ladeira. Por estereótipos, ele aponta o “muçulmano terrorista e fanático religioso”, o “ditador cubano” e o “caudilho sul-americano”, conceituações aceitas pelo público sem maiores questionamentos após massacrante repetição acrítica. Cuba, Venezuela, Rússia, China, Irã, Coréia do Norte, o MST, os movimentos populares e a esquerda em geral são sempre tratados de forma agressiva e nem sempre verdadeira. Do outro lado, os governos dos EUA, de Israel, da Europa Ocidental – os “brancos”, enfim – são absolvidos previamente, mesmo quando conduzem massacres e destruição de países inteiros. Há uma espécie de manual de redação moral, indicando sempre quem são amigos e inimigos.
Muito já se escreveu sobre a ditadura midiática, sua absoluta repulsa a qualquer tipo de democratização ou regulação. A situação se agrava com o poderio das big techs na internet, cujos algoritmos aparentemente impessoais e “técnicos” decidem o que pode ou não ser comentado e mostrado nas redes.
É incrível que ao fim do primeiro ano do terceiro governo Lula – e quinto dos liderados pelo PT – a distribuição o destino da publicidade oficial siga tendo como destino prioritário a Rede Globo. Isso depois de várias campanhas de destruição da imagem do presidente Lula e de um golpe institucional. É algo que apenas a análise política não explica. Talvez haja aí algum tipo de masoquismo político.
São temas incômodos e complexos. Por isso, o livro de Francisco Fernandes Ladeira deveria ser lido por todo o governo federal.
A ideologia dos noticiários internacionais
Francisco Fernandes Ladeira
Editora CRV
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Gilberto Maringoni é professor de Relações da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa Brasileira (OPEB)