Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A soltura de Julian Assange e a luta pela liberdade de imprensa

(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Julian Assange, australiano fundador e editor do site WikiLeaks, foi solto da prisão de segurança máxima de Belmarsh, em Londres, no último 24 de junho, após cinco anos de confinamento. Como condição para alcançar a liberdade, o jornalista se declarou culpado pelo crime de disseminação ilegal de materiais relacionados à segurança nacional dos Estados Unidos. O caso de Assange enseja reflexões sobre os limites invocados à liberdade de imprensa, não apenas nos EUA, mas em vários outros países, sendo o Brasil um deles.

Tudo começou em 2010. À época, a Guerra do Iraque, iniciada pelo republicano George W. Bush (2001-2008), arrastava-se havia sete anos. Como forma de defender a transparência, denunciar as atrocidades do conflito e desmentir a versão oficial estadunidense de que o alto número de mortes era decorrente de combates, o WikiLeaks de Assange divulgou um vídeo, gravado três anos antes, que mostrava as forças americanas cometendo crime de guerra ao atirarem em civis indiscriminadamente de um helicóptero que sobrevoava o solo iraquiano. Do banho de sangue, apenas duas crianças, um motorista e um fotógrafo da agência de notícias Reuters saíram ilesos. 

Assange não parou por aí. Pelo WikiLeaks, o jornalista levou a público documentos confidenciais dos Estados Unidos sobre a guerra do Afeganistão, dos prisioneiros de Guantánamo e até mesmo sobre a corrupção na Tunísia, país cujos protestos serviram de estopim para a Primavera Árabe, na década de 2010. A obtenção do material só foi possível graças a Chelsea Manning, uma analista dos serviços secretos do Exército norte-americano, que foi sentenciada a 35 anos de prisão pelo vazamento. Manning, porém, teve sua pena reduzida pelo presidente Barack Obama (2009-2017) e saiu da cadeia depois de cumprir sete anos de pena.

Julian, por outro lado, não seria deixado em paz pelos governos dos EUA tão cedo. O Departamento de Justiça do país acusava o jornalista por 18 violações à Lei de Espionagem, datada da Primeira Guerra Mundial, e à Lei de Fraude e Abuso de Computadores, de 1986. Se condenado por todos os crimes, Assange poderia ser submetido a uma pena de mais de 170 anos, o que criaria um precedente perigoso para os profissionais que praticam jornalismo em solo americano.

O caso logo ganhou repercussão internacional e abriu espaço para o questionamento público acerca do paradoxo – para não se dizer hipocrisia – do Estado norte-americano:  como o país alcunhado de guardião da liberdade e da democracia no mundo poderia condenar um jornalista justamente por exercer o direito de liberdade de imprensa? 

A indagação é bem fundamentada, visto que a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos estabelece que o Congresso não fará nenhuma lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibindo o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de apresentar petições ao Governo para a reparação de queixas”. Não é bem uma novidade que a hermenêutica utilizada no âmbito das legislações trabalhem a favor dos poderosos em detrimento da transparência pública; no entanto, pode-se dizer que tal manobra poderia, ao menos, ser executada de maneira mais envergonhada e não tão escrachada.

Outro aspecto que merece atenção foi relembrado por Laura Poitras, em coluna do The New York Times publicada em 2020: a Lei de Espionagem “não permite uma defesa de interesse público, o que significa que um júri não pode ter em conta a diferença entre  um denunciante que expõe crimes do governo à imprensa e um espião que vende segredos de Estado a um governo estrangeiro”. Em suma, o trabalho jornalístico, que leva informação de interesse público à sociedade e prioriza a transparência, pode ser colocado no mesmo patamar que as espionagens arbitradas com objetivos escusos. 

Mas os questionamentos não foram suficientes para arrefecer a batalha judicial entre Assange e EUA, que duraria 12 longos anos. Em 2012, o australiano fez da embaixada do Equador no Reino Unido sua guarida, onde ficou até 2019, quando foi levado pela polícia britânica à prisão de Belmarsh. Desde então, o australiano, ao lado de seus advogados, travou uma luta contra sua extradição para as terras ianques.

É fato indiscutível que esse não foi o primeiro nem o último caso em que a liberdade de imprensa e o Estado norte-americano entraram em conflito. O Pentagon Papers e o caso de Edward Snowden são exemplos disso. No primeiro, os jornais The New York Times e The Washington Post divulgaram, em 1971, informações sigilosas do Pentágono sobre mentiras que quatro governos estadunidenses contavam acerca da Guerra do Vietnã. O Times chegou a ser impedido temporariamente pela Justiça de divulgar notícias sobre o assunto. O episódio emblemático foi retratado no filme ‘The Post – A Guerra Secreta’ (2018), dirigido por Steven Spielberg e estrelado pelos astros hollywoodianos Tom Hanks e Meryl Streep. 

Já o caso de Snowden ocorreu em 2013, após o estouro do WikiLeaks, quando o ex-funcionário Agência de Segurança Nacional (NSA) Edward Snowden vazou informações sigilosas de Washington ao jornalista Glenn Greenwald (fundador do The Intercept e The Intercept Brasil), à época no jornal britânico The Guardian, que revelavam um amplo sistema de espionagem dos EUA sobre governos europeus e latino-americanos, incluindo o Brasil. Nos dois exemplos citados, veio à tona o debate se tais informações deveriam ter sido divulgadas e tornado públicas, vide os supostos riscos à segurança nacional que elas poderiam acarretar.

Embora existam semelhanças entre o Pentagon Papers e o caso Snowden com o WikiLeaks, é fato que tanto o exemplo anterior quanto o posterior não ofuscaram Julian Assange. O australiano, inclusive, talvez tenha se tornado a maior personificação da liberdade de imprensa – ou da luta por ela – no mundo. 

Em contrapartida, urge destacar que não se deve adotar uma perspectiva maniqueísta dos fatos e esquecer a personalidade controversa de Assange, que é odiado por uns e amado por outros. Na esteira das acusações dos EUA de que foi alvo, o australiano foi acusado de crimes sexuais na Suécia. Além disso, Julian revelou, propositalmente, os nomes dos civis afegãos que serviram de informantes da cúpula militar estadunidense, de modo a colocar a vida deles em risco, e publicou uma gama de emails dos integrantes do Partido Democrata que tinham sido hackeados por russos, o que ajudou o magnata Donald J. Trump a ganhar as eleições presidenciais de 2016, como escreveu James Kirchick no The New York Times

Ao mesmo passo, é nevrálgico que se interprete a liberdade de imprensa que envolve o WikiLeaks como maior do que a figura humana de Julian Assange, mesmo que ele tenha se tornado símbolo dessa garantia constitucional presente nas nações que primam pelo Estado democrático de Direito.

Em 2022, os principais veículos de notícias americanas e europeias, incluindo o The New York Times, The Guardian, Le Monde, Der Spiegel e El País solicitaram, em carta conjunta, a retirada das denúncias contra Assange ao então governo de Joe Biden, justamente pela possibilidade de as denúncias pavimentarem um caminho sombrio contra veículos jornalísticos e seus colaboradores, amplamente conhecidos como constituintes do quarto poder. Pode-se afirmar, portanto, que o acordo fechado entre EUA e Assange, o qual, na prática, torna o australiano um homem livre para retornar à Austrália e faz de sua extradição ao país norte-americano desnecessária, é uma vitória da imprensa como um todo. 

Essa vitória da imprensa veio em boa hora, inclusive para dar uma lição aos magistrados brasileiros. Apenas em junho, pôde-se acompanhar duas decisões jurídicas contestáveis. Uma se deu no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), quando o ministro Alexandre de Moraes censurou reportagens e vídeos jornalísticos que divulgavam denúncia de agressão de Jullyene Lins contra seu ex-marido, o deputado Arthur Lira (PP-AL),presidente da Câmara dos Deputados

Outra foi tomada por juiz da 2ª Zona Eleitoral de São Paulo, que censurou panfletos com reportagens críticas à gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Ambas as determinações foram revertidas pelos próprios ministro e juiz, respectivamente, após críticas que sofreram da sociedade civil e de especialistas. No Brasil, a liberdade de imprensa é assegurada pelo artigo 5° da Constituição, sendo a censura vedada pelo artigo 220 da Carta Magna.

É claro que esses dois episódios não se comparam à dimensão do WikiLeaks, mas servem para ilustrar como as liberdades de imprensa, de informação e de ser informado podem ser atacadas em diversos níveis, cotidianamente, de Washington a São Paulo. Por isso, é imprescindível que a soltura de Assange seja comemorada e que a defesa desses direitos constitucionais seja estabelecida sempre. 

Afinal, é como diz a música de Guilherme Arantes “Amanhã/ Mesmo que uns não queiram/ Será de outros que esperam/ Ver o dia raiar/ Amanhã/ Ódios aplacados/ Temores abrandados”. Se o sol passou a brilhar mais para Assange desde o dia 24 de junho, passou a brilhar mais para todos nós. 

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Laura Santos Lopes é jornalista em formação pela Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC) da Unesp de Bauru, membro do Núcleo de Pesquisa de Direito à Comunicação (NUPEDIC) e grande entusiasta dos temas inerentes à política, economia, relações internacionais e ao direito.