Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Conflito de interesses, instituições e transformações sociais

No mês de maio passado, completou-se uma década de vigência da Lei n. 12.813. Esse instrumento legal trata do conflito de interesses no exercício de funções públicas federais e impedimentos posteriores ao desempenho de determinadas atividades estatais.

A Lei n. 12.813, de 2013, foi festejada como um importante mecanismo de combate à corrupção e malversações assemelhadas. Houve um generalizado reconhecimento de que foram significativamente reduzidos os riscos de corrupção na chamada “porta giratória” entre os setores público e privado.

A lei em questão define o que se entende por conflito de interesse. Afirma, em seu artigo terceiro, inciso primeiro: “conflito de interesses: a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”.

Entre as hipóteses específicas de conflito de interesses, previstas na lei referida, constam: a) exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe (art. 5o, inciso II) e b) praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, e que possa ser por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão (art. 5o, inciso V).

Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega e Edson Leonardo Dalescio Sá Telles, em recente artigo no site Consultor Jurídico, ponderaram: “O advento desta lei representou mais um avanço na busca pela criação de adequados padrões de probidade, ética, transparência e integridade em órgãos e entidades da administração, bem como no incremento de ferramentas aptas a reprimir irregularidades praticadas por agentes públicos e privados”.

É inegável a pretensão do legislador da Lei n. 12.813, de 2013, realizando os princípios constitucionais da República, moralidade, publicidade e impessoalidade, de buscar restringir, de maneira incisiva e efetiva, uma indesejável interação promíscua entre interesses públicos e privados.

E como fica o lobby diante da Lei n. 12.813? O lobby não é considerado uma atividade ilícita e reclama regulamentação adequada para se manter do lado certo da fronteira da legalidade. Afinal, influenciar de forma legítima as decisões estatais faz parte do jogo democrático e contribui para uma maior consistência e pluralidade na conformação das ações e políticas públicas.

Os principais planos de combate à corrupção elaborados no Brasil nos últimos anos enfatizam a regulamentação das atividades dos lobistas como uma medida essencial. Com efeito, é fundamental estabelecer limites e procedimentos para que o lobby possa ser considerado uma atividade construtiva e compatível com os padrões de moralidade exigidos nas interações com o Poder Público.

Nesse sentido, depois de décadas de debates e dezenas de proposições apresentadas, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 1.202, de 2007. Trata-se de um importante avanço na disciplina das influências aceitáveis dos interesses privados em relação às autoridades públicas com poder de decisão. No Senado Federal, na forma do Projeto de Lei n. 2.914, de 2012, aperfeiçoamentos podem ser agregados, como aqueles relacionados com o tratamento de encontros informais entre agentes públicos e privados, como ocorre em cafés, almoços, jantares, festas e similares.

Entretanto, algo bem diverso do lobby (lícito) é um festival de interações “estranhas” entre os interesses públicos e privados. Nessa linha, é espantoso, para dizer o mínimo, os relatos do que aconteceu em Lisboa nos últimos dias do mês de junho deste ano.

Segundo a jornalista Malu Gaspar, no jornal “O Globo” do dia 29 de junho de 2023, mais de mil inscritos participaram de um fórum jurídico na capital portuguesa. Entre as figuras mais vistosas estavam renomados advogados, empresários de diversos setores da economia do lado de cá do Atlântico, autoridades do primeiro escalão do governo, parlamentares e ministros de tribunais superiores brasileiros.

De acordo com Gaspar, a programação de três dias de palestras do evento jurídico ficou claramente em segundo plano. O que despertou maior interesse foi a intensa agenda paralela de “almoços, coquetéis e jantares grátis”. Esses convescotes foram patrocinados por importantes personalidades e não menos destacadas empresas, incluindo bancos, grandes varejistas e companhias aéreas. Reuniram, de forma bem animada, VIPs de todo gênero, sempre com a presença de magistrados, futuros juízes e as partes em processos judiciais em curso ou prestes a começar.

No dia 10 de maio de 2023, o Professor Conrado Hübner Mendes publicou um texto na Folha de S. Paulo sobre os apuros de Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte Americana. O magistrado foi fortemente criticado nos Estados Unidos por ter férias luxuosas, voos privados e a escola de uma sobrinha-neta pagos pelo bilionário Harlan Crow. Harlan teria, ainda, comprado três propriedades pertencentes ao magistrado e oferecido moradia gratuita à mãe de Clarence. O centro do problema reside no fato de que negócios de Crow estão sob escrutínio da Suprema Corte.

De forma irônica, Hübner registrou que Clarence Thomas teria uma vida tranquila nas terras tupiniquins. Listou, para comprovar a tese, uma série de peripécias, consideradas normais por aqui, de magistrados brasileiros ocupantes de cadeiras em tribunais superiores. Entre outras “curiosidades”, ele mencionou: a) realização de palestras em bancos; b) troca de mensagens de WhatsApp com empresários; c) propriedade de empresa de educação; d) patrocínios de instituições financeiras; e) viagens gratuitas para frequentar eventos de lobby financeiro pelo mundo; f) empréstimo de jatinho por advogados para assistir jogos de tênis em Roland Garros; g) descanso em casas de veraneio pertencentes a parentes de réus; h) participação em festas promovidas por famosos causídicos; i) pressão para a nomeação de filhos para cargos no Poder Judiciário e j) familiares que advogam na Corte onde o magistrado atua.

Quero crer que todo e qualquer cidadão brasileiro, com um mínimo de juízo crítico e depois de ler os parágrafos anteriores, é capaz de compreender os limites para transformações socioeconômicas mais profundas a partir de instituições animadas por certas práticas e por certos atores.

Lembrei de um trecho da apresentação do livro “20 anos de Corrupção. Os escândalos que marcaram Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro”. Nele, o jornalista Ivo Patarra constatou: “Parte de nosso sistema de justiça, entretanto, curvou-se ante os ‘donos do poder’. Misturou-se a eles. Com honrosas exceções, fracassamos nestes 20 anos”.

Afirmo, pela enésima vez, que as mudanças efetivas na realidade brasileira, rumo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo terceiro da Constituição), exige conscientização, organização e mobilização, em grande escala, dos setores e interesses populares e progressistas, sintomaticamente bem distantes das Lisboas da vida.

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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional