Os dados divulgados nas últimas semanas sobre a contabilidade informal da Odebrecht relacionada às propinas e superfaturamentos, somados às revelações da Lava Jato e a recuperação de informações sobre velhos escândalos como a Lista de Furnas e o Mensalão forneceram à imprensa elementos para um mergulho no DNA de nossa corrupção institucionalizada.
Se a função da imprensa é investigar, verificar, organizar e contextualizar dados, fatos e eventos para que o leitor possa entendê-los, estamos então diante de um desafio inédito na história dos jornais, revistas e telejornais brasileiros. Políticos, empresários e juristas travam uma guerra de informações para defender interesses, egos e projetos partidários. Se a imprensa quer justificar seu papel, chegou a hora de assumir a investigação a fundo da estrutura corruptora da atividade política, independente de estratégias eleitorais ou manobras jurídicas com fins partidários.
As notícias divulgadas nas últimas semanas eliminam as poucas dúvidas que ainda existiam sobre a existência de uma estrutura corrupta e corruptora, vigente há décadas, que não foi criada por um partido, mas por todos eles, e que sobrevive porque se transformou num sistema associado à transformação da atividade parlamentar num empreendimento rentável e de longo prazo.
Se a imprensa quer ser coerente com seu discurso corporativo deve focar agora na identificação do DNA da corrupção e não nos malabarismos jurídicos e processuais do impeachment, ou da polêmica sobre o triplex de Lula no Guarujá. A corrupção institucionalizada no superfaturamento de obras públicas, na distribuição de propinas e na contabilidade informal das campanhas eleitorais causa prejuízos bilionários e históricos ao conjunto da população. São várias centenas de triplex desviados do orçamento federal que deveria ser um bem comum da sociedade mas foi transformado num reservatório de dinheiro sem dono sujeito à livre pilhagem.
A imprensa precisa patrulhar implacavelmente os nossos três poderes, as empresas estatais e as empreiteiras de obras públicas. Os executivos da mídia dirão que isto já está sendo feito mas o simples fato de que a corrupção institucionalizada existe, pelo menos, desde a década de 80, conforme mostram as planilhas da Odebrecht, revela que a missão não foi cumprida. A questão é o envolvimento da grande imprensa com interesses partidários e aí o problema se complica.
Os jornais, revistas e telejornais poderiam começar investigando a contabilidade das campanhas de cada deputado federal e de cada senador. Outras empreiteiras, entre as investigadas pela Lava Jato, também devem ter suas planilhas secretas sobre pagamentos informais a políticos e funcionários públicos. Por que a imprensa não vai atrás destas planilhas, em vez de ficar passivamente esperando por vazamentos do Ministério Público ou da Polícia Federal?
O DNA da corrupção passa inevitavelmente pela Câmara e pelo Senado, onde as obras públicas incluídas no orçamento federal são aprovadas com o sobrepreço que depois financia as propinas que voltam mais tarde para os políticos e partidos. As planilhas mostram que a imensa maioria dos partidos integra esta rede de cumplicidades onde as siglas se alternam a cada quatro ou oito anos.
A corrupção eliminou a diversidade ideológica, que aparece apenas quando se trata de defender o patrimônio pessoal ou corporativo. Qualquer repórter da área parlamentar está cansado de saber disto.
A síndrome da terra arrasada
Leis proibindo o financiamento privado de campanhas eleitorais já foram aprovadas, embora a Câmara de Deputados esteja tentando adiar a sua aplicação. Nossa experiência histórica mostra que a existência de leis não é capaz de exorcizar práticas como a corrupção institucionalizada. Os agentes corruptos e corruptores sempre acabam dando um “jeitinho” e tudo continua como antes.
A existência de leis proibindo as doações informais serve de justificativa para que a imprensa saia da prática do jornalismo declaratório, aquele que apenas reproduz o que dizem as fontes, para entrar para valer na investigação e no patrulhamento das diversas campanhas eleitorais, não importa a sigla.
Mas por enquanto a imprensa segue mais preocupada com o malabarismo jurídico-político em torno do impeachment, porque ainda não consegue se livrar de seus vínculos passados e presentes com segmentos partidários de tendência conservadora.
Alguns comentaristas da imprensa falam do risco de uma política de terra arrasada em consequência de um mergulho a fundo na corrupção institucionalizada. Alegam que há o perigo de repetição do que ocorreu na Itália depois da investigação chamada Mãos Limpas , quando os partidos políticos pagaram o preço de seu envolvimento histórico com a corrupção e a Máfia. A metáfora da terra arrasada ilustra a possibilidade de uma desarticulação generalizada do nosso sistema partidário, com eventuais consequências para a estabilidade democrática. É um risco sim, mas talvez não haja alternativa tal o grau de corrupção da estrutura partidária e dos políticos deste país.
Nosso dilema atual é o que fazer com um sistema partidário que deixou de ser uma instituição representativa da diversidade ideológica e social do país, para se transformar num ambiente dominado pelo corporativismo de siglas e pela manipulação de dinheiro ilegal. As leis servem para punir, mas o desenvolvimento da consciência social de que a corrupção equivale a roubar dinheiro do contribuinte é uma missão da imprensa. É ai que pode estar a diferença com a operação Mãos Limpas, na Itália.
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Carlos Castilho é jornalista e editor da página do Observatório da Imprensa