“O ladrão que furta para
comer não vai nem leva ao
Inferno: os que não só vão, mas
levam, são outros ladrões,
de maior calibre e de mais alta
esfera. (…) Em vez de os reis
levarem consigo os ladrões ao
Paraíso, os ladrões são os que
levam consigo os reis ao inferno”
Padre Antônio Vieira
O padre Antônio Vieira proferiu o seu Sermão do Bom Ladrão no ano de 1655, na Igreja da Misericórdia de Lisboa, diante de uma assembleia de nobres – entre eles o próprio dom João IV. A partir da passagem do Evangelho de Lucas em que Jesus Cristo promete a salvação ao ladrão que se arrepende (Lc. 23,42s), o jesuíta dedica-se a nomear não os ladrões de galinha, como costumam ser chamados atualmente, mas os ladrões de “maior calibre e de mais alta esfera”. Ele os nomeia com todas as (belas e rigorosas) letras: “Os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos”.
Os outros, os chamados ladrões de galinha, seriam inocentes aos olhos de Deus. Criminosos mesmo são os ladrões que mandam, os que têm influência sobre os negócios de Estado. “Os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.” Na visão de Vieira, o pecado inamovível é o de quem, investido de poder, rouba (ou deixa roubar) as economias de gente indefesa. Mesmo quando não praticado diretamente pelo soberano, esse pecado o alcança e o leva ao castigo eterno, uma vez que “qui non vetat peccare, cum possit, jubet” (quem, podendo, não impede o pecado incentiva o pecado), como teria ensinado o mítico rei gentio Agamenão.
Hoje, passados 360 anos da homilia de Vieira em Lisboa, os vincos de tensão no semblante de Dilma Rousseff parecem um indício da mesma danação. Dilma não é uma imperatriz, não tem sangue azul e não reina absoluta sobre um Estado do qual possa dispor segundo suas predileções subjetivas. Dilma não passa de uma chefe de Estado subordinada às leis da República. Mesmo assim, o sofrimento inscrito em suas feições contraídas (porque contrariadas) sinalizam um padecimento moral digno de um rei maldito. No seu rosto – especialmente no entorno de seus olhos, que ainda guardam um lume de determinação – se desenha o relevo hostil de um inferno em vida. Dilma paga por pecados que não são seus, mas dos quais não sabe como se eximir.
Todos dizem que ela é honesta. Luminares da oposição dão testemunho espontâneo da integridade da governante brasileira. Ninguém levanta uma acusação de dolo contra ela. Ao contrário, de um lado e de outro se erguem as vozes que asseguram: Dilma não tem parte pessoal com o malfeito. Não obstante, as linhas de sua face estampam o rastro de um castigo bíblico.
E por que isso? Por que expia a presidente da República? Certamente a dilaceração que a atropela não vem apenas do fato de que, sendo honesta (admitamos a premissa), comanda um governo abarrotado das mais torpes desonestidades. Há de haver indignação na alma da presidente, uma violenta indignação, ou a premissa de sua inocência não seria verdadeira. Essa indignação, porém, é pouca para explicar tanta dor aparente. Também não é crível que a razão de seu pesar seja a sombra do impeachment iminente – uma (ou duas) ameaça(s) de impeachment pode(m) até aborrecer a mandatária, mas não seria(m) capaz(es) de impor-lhe o inferno em vida (fora o fato de que ninguém mais aposta que esse impeachment das pedaladas vá vingar).
A origem do inferno da presidente é de outra extração: uma espécie de mordaça de fundo religioso atada ao pensamento político. Dilma pena porque não pode tratar do maior – talvez o único, posto que foi dele que decorreram os demais – problema de seu governo: a corrupção em larga escala, no atacado e no varejo. Se fôssemos recorrer uma vez mais à cosmogonia teológica do padre Vieira, diríamos que Dilma é consumida por uma dor sem solução porque foi impedida de ir ao confessionário – e ir ao confessionário não necessariamente para assumir culpas que não tenha, mas para conversar sobre as culpas que o destino jogou sobre seus ombros.
A pior apostasia
O núcleo do problema central de seu governo é assunto proibido no léxico de seu partido, um tabu maior do que o seu governo. A corrupção do PT não foi interditada, desgraçadamente. Mas falar da corrupção do PT dentro do PT tornou-se um interdito. Tocar nisso é a pior apostasia para um militante que pretenda seguir aceito como militante. Dilma sofre menos por não poder fazer nada – e mais por não poder dizer nada. Nem ela nem o PT são capazes de fazer o que o padre Vieira fez há 360 anos: nomear com todas as letras (no caso presente, letras horrendas) quem são os ladrões dotados de poder, quem são os ladrões que enforcam.
De uns dias para cá, uns dois ou três ministros andaram cometendo declarações um tanto indisciplinadas, admitindo que houve erros no quesito ético (eles falam sempre por eufemismos afetados). O modo como esses poucos, fazendo pose de corajosos, falam disso é mais um sintoma do interdito. Eles falam disso sem falar nada disso. Ninguém parece sentir-se autorizado a enunciar o que precisa ser enunciado para ser superado: o emprego de uma organização disciplinada, vinculada ao partido, incrustada em repartições públicas, para o desvio sistematizado de recursos e de poder, prejudicando principalmente os mais pobres e mais desassistidos. Não existe à vista a iniciativa de debater a fundo as razões por que, em alguma curva do caminho, o PT se transformou no seu oposto maligno.
Por que a corrupção, que antes seria uma intercorrência, ganhou o estatuto de método? Como a corrupção submeteu o partido aos ditames do capital selvagem? Se querem mesmo falar de política, é disso que o PT e a presidente precisam falar. Mas eles não podem. Têm medo do inferno. E ardem.
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP