Saturday, 07 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1304

O PPCub de Brasília e os interesses econômicos em disputa

(Foto: André Azevedo por Pixabay)

“O Plano de ‘Preservação’ do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub) foi aprovado na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF)./O PPCub, Projeto de Lei Complementar n. 41, de autoria do Governo do Distrito Federal, tramitou em regime de urgência e foi analisado de forma açodada no plenário da CLDF, na tarde desta quarta-feira (19/6)” (fonte: metropoles.com).

O portal Metrópoles lançou uma série de reportagens para mostrar “… como o PPCub trai o próprio nome e, em vez de preservar Brasília, abre espaço para intervenções drásticas no Plano Piloto que desfiguram a capital federal do Brasil tal qual foi concebida e com as características que renderam o título de Patrimônio da Humanidade, concedido em 1987” (fonte: metropoles.com).

Em matéria do dia 19 de junho de 2024, o portal Metrópoles resumiu assim as mudanças negativas no Plano Piloto permitidas pelo PPCub: a) camping com tendas, trailers, barracas, comércios e restaurantes no fim da Asa Sul; b) aumento da altura, de três para 12 andares, de 16 prédios nos Setores Hoteleiros Norte e Sul; c) transformação de bolsões de estacionamento na Avenida W3 Sul em comércios e praças e d) construção de mais apartamentos às margens do Lago Paranoá, perto do Palácio da Alvorada.

A professora Marta Adriana Bustos Romero, titular da FAU-UnB e integrante do Laboratório de Sustentabilidade Aplicada à Arquitetura e Urbanismo (LaSUS), em um texto com forte densidade técnica, censurou o PPCub aprovado. Afirmou Marta Adriana: “Desenvolvimento local não é sinônimo de ocupação: a urbanização de Brasília entre 2013 e 2019 suprimiu a vegetação nativa fora das unidades de conservação e, assim, hoje temos que 61% do Cerrado remanescente suprimido foram substituídos por uso urbano. O verdadeiro desenvolvimento envolve, pelo menos, o suporte de evidências científicas que apontam aumento de calor na capital para o qual existem medidas de mitigação, porém, ignoradas na aprovação do PPCUB, como, por exemplo, a ampliação, manutenção e preservação do verde urbano, e a disponibilização de atividades produtivas fora da área tombada. Hoje, o verde é orientado por questões universais relacionadas às mudanças climáticas e aos serviços ecossistêmicos em áreas naturais e urbanas. Esteve presente desde a gênese do projeto da capital, associado à identificação de escalas, à característica bucólica e à transição do edificado para o não edificado. A história nos diz que o DF merece um território preservado e um futuro mais sustentável. No entanto, o PPCUB aprovado pela CLDF vai no sentido contrário desse histórico” (fonte: correiobraziliense.com.br).

Outras resistências partiram dos mais diversos segmentos da sociedade brasiliense. Eis alguns registros significativos:

“A secretária de Cultura do Distrito Federal à época em que Brasília recebeu o título de Patrimônio da Humanidade, Vera de Castro Chaves Pinheiro, hoje com 86 anos, demonstra preocupação e indignação com as alterações na capital federal previstas no Plano de ‘Preservação’ do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub), aprovado em 19 de junho de 2024./Citando o Oscar Niemeyer: ‘Você não pode falar em urbanismo com especulação imobiliária’ ’, disse, em entrevista ao Metrópoles, gravada na terça-feira (2/7). ‘A diferença é esta: tem um grupo de idealistas e tem outros que são empresários e que querem só ganhar dinheiro’, declarou” (fonte: metropoles.com).

“MPDFT ajuizará ação direta de inconstitucionalidade contra PPCub/A promotora de Justiça Marilda dos Reis Fontinele conclamou a sociedade para se unir contra o PPCub, que ameaça a preservação de Brasília” (fonte: metropoles.com).

“Professores criticam PPCub: ‘Parece dialogar bem com interesses particulares’/Especialistas em arquitetura e urbanismo de Brasília criticaram PPCub em audiência pública no Senado Federal” (fonte: metropoles.com).

“ ‘Interesses econômicos irresponsáveis’, diz senadora Leila sobre PPCub./Comissão de Meio Ambiente do Senado promove, nesta manhã, audiência pública sobre Plano de ‘Preservação’ do Conjunto Urbanístico de Brasília” (fonte: metropoles.com).

“Em debate na Universidade de Brasília (UnB), na tarde de quarta-feira (10/7), especialistas em arquitetura e urbanismo criticaram fortemente o Plano de ‘Preservação’ do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub). A medida foi chamada de ‘perversa’ e associada a um ‘cheque em branco para se vender a cidade’ ” (fonte: metroples.com).

Vivemos, no Distrito Federal e no Brasil, em uma das sociedades mais desiguais do planeta. Paralelamente, como era de se imaginar, os índices de violências, opressões e discriminações, de todas as naturezas, são estratosféricos. Esse triste quadro não é obra do acaso, uma maldição dos deuses ou resultado da preguiça coletiva. Essas e outras mazelas das sociedades distrital e nacional decorrem da existência de poderosos mecanismos de concentração de riquezas (materiais e imateriais) em segmentos extremamente minoritários da população (0,1%, aproximadamente).

Um dado de especial relevo é que os referidos mecanismos socioeconômicos de produção de desigualdades e outras iniquidades são cuidadosamente inseridos na institucionalidade jurídica. Praticamente todos eles assumem a forma de normas constitucionais, legais e infralegais. Residualmente, em regra, as decisões judiciais chancelam esses interesses.

Portanto, não é possível escapar da constatação de que existe um conflito básico e fundamental nas sociedades organizadas em torno da apropriação da riqueza produzida. Não é o único, obviamente, mas é o principal. Ele é tão mais intenso e cruel quanto maior é a desigualdade observada.

Voltemos ao PPCub de Brasília. A aprovação desse Plano é um daqueles momentos incomuns em que os interesses em disputa em uma sociedade ficam claramente explicitados. Os interesses na maioria da população, na forma de preservação de espaços verdes e desenvolvimento sustentável, são confrontados com os interesses da especulação imobiliária mais agressiva. Poucas vezes o lucro a qualquer custo e a maximização inconsequente da acumulação de riquezas ficam tão evidentes.

Veja o seguinte registro, em matéria do portal Metrópoles do dia 27 de junho de 2024: “Com a permissão [no PPCub] para que lotes destinados a clubes a poucos metros do Palácio da Alvorada possam abrigar hotéis e apart-hotéis, as margens do Lago Paranoá poderão ter 9 mil novos apartamentos, quantidade equivalente às moradias de 12 superquadras do Plano Piloto juntas. Seria um novo bairro na área tombada, com 27 mil habitantes”.

Um dado adicional é muito emblemático: “Como clubes, os cinco imóveis do SCES têm valor estimado de R$ 150 milhões. Com a permissão para construção de apartamentos, esses terrenos serão hipervalorizados e passarão a R$ 1,4 bilhão” (fonte: metropoles.com).

Subsiste uma questão estratégica a ser abordada. Como se dá a representação política dos interesses em disputa na sociedade? Registre-se que PPCub de Brasília foi aprovado, na Câmara Distrital, em dois turnos, pelo placar de 18 a 6.

É curioso, para dizer o mínimo, que os interesses amplamente majoritários na sociedade tenham uma representação parlamentar tão limitada. Em 2022, escrevi um pequeno livro, com o título “Como escolher seu deputado”, que oferece algumas respostas para essa perplexidade.

São dois basicamente, com alguma simplificação, os modelos de campanhas eleitorais proporcionais, com reflexos necessários no exercício dos mandatos. O primeiro tipo de campanha, caracterizado pelo “voto fisiológico” e/ou “voto clientelista”, está baseado: a) na contratação interesseira de cabos eleitorais; b) na “compra” de apoios de lideranças comunitárias e afins e c) na promessa de vantagens imediatas descoladas de políticas públicas e do equacionamento dos grandes problemas locais, regionais e nacionais. Esses e outros expedientes na mesma linha normalmente estão lastreados em volumes consideráveis de recursos pecuniários. O segundo tipo de campanha, caracterizado pelo “voto de opinião”, está fundado: a) em propostas programáticas; b) em trajetórias de vida que demonstram as habilidades técnicas e políticas para instrumentalizá-las e c) vínculos com os segmentos mais consequentes da sociedade. Nesses casos, recursos pecuniários mais significativos não são decisivos.

Normalmente, o primeiro tipo de campanha, baseada no “voto fisiológico” e/ou “voto clientelista”, resulta, se bem-sucedida, em um mandato parlamentar comprometido com interesses socioeconômicos minoritários bem definidos. São parlamentares que, em regra, oferecem sustentação política para a construção e manutenção de bilionários mecanismos de transferência de riquezas do conjunto da sociedade (mais de 99,9% da população) para uma minoria de privilegiados (menos de 0,1% da população).

Já o segundo tipo de campanha, baseada no “voto de opinião”, resulta, se vitoriosa, num mandato parlamentar comprometido, em linhas gerais, com as causas populares e democráticas mais sensíveis e relevantes. Embora as visões programáticas possam ser mais liberais ou mais sociais, não existe um alinhamento quase que automático com as práticas e os interesses minoritários mencionados.

Para o caso da aprovação do PPCub de Brasília não parece ser necessário um grande esforço de análise para identificar o perfil das campanhas e mandatos da maioria parlamentar formada para chancelar o Plano.

Parece fora de dúvida que a conscientização, organização e mobilização dos interesses majoritários, populares e democráticos, das sociedades distrital  e brasileira são os caminhos para que os interesses minoritários da especulação imobiliária e afins não continuem dominantes nos espaços institucionais, os mecanismos de produção de desigualdades socioeconômicas sejam desmontados e um convívio social livre, justo, sustentável e solidário seja construído no Distrito Federal e no Brasil.

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Aldemario Araujo Castro é Advogado, Mestre em Direito e Procurador da Fazenda Nacional