“O Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de Minas Gerais deu ganho de causa a um hospital de Belo Horizonte que demitiu um funcionário por ter usado, no local de trabalho e durante o serviço, uma camisa com a imagem do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, com os dizeres ‘Ustra Vive’. Ustra comandou, durante a ditadura militar no Brasil, o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), aparato responsável por tortura de dezenas de presos políticos” (fonte: oglobo.globo.com).
“Com governistas pedindo a retomada dos debates sobre o PL das Fake News após os ataques do dono do ‘X’, Elon Musk, um deputado bolsonarista apresentou um projeto para proibir a regulamentação das redes sociais. A proposta foi apresentada pelo deputado Coronel Chrisóstomo (PL-RO) na segunda-feira, dia 8/4, após o ministro do STF Alexandre de Moraes incluir Musk no inquérito das milícias digitais. No projeto de apenas 1 artigo, Chrisóstomo propõe que seja vedado ao Estado a regulamentação para “garantir a liberdade de expressão e o livre funcionamento das redes sociais” (fonte: metropoles.com).
As duas notícias mencionadas e tantas outras relacionadas com os fatos destacados renderam e ainda rendem muita movimentação nas redes sociais e na imprensa nos últimos dias. Uma parte significativa das repercussões envolve fortes ataques ao Judiciário brasileiro por promover, na visão dos críticos, ofensas inaceitáveis à liberdade de manifestação de pensamento.
Entre as contrariedades mais recorrentes está a afirmação de que existe uma espécie de perseguição ao “pensamento de direita”. Os registros de discordância, implicitamente ou não, admitem como normal ou aceitável veicular apoio à tortura, exaltar a figura de um reconhecido torturador, realizar ofensas diversas, disseminar notícias falsas e tolerar o incentivo à prática dos crimes mais bárbaros, inclusive envolvendo crianças e adolescentes.
Obviamente, fazer propaganda positiva do torturador, por ser torturador, pode e deve ser enquadrado como apologia ao crime ou criminoso. Não há dúvida de que a tortura é um dos crimes mais abjetos e covardes que podem ser realizados no âmbito do convívio social.
Para afastar qualquer distorção acerca das qualificações jurídicas apontadas são apresentados os termos da Constituição e do Código Penal. Dizem os incisos III e XLIII do art. 5o do Texto Maior, respectivamente: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Define o Código Penal: “Art. 287 – Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa”.
É evidente que aqueles que fazem apologia à tortura, ao torturador e outras modalidades criminosas igualmente graves e repugnantes não podem buscar guarida para essa miserável conduta na liberdade de manifestação de pensamento, como direito fundamental consagrado na Lei Maior.
Com efeito, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Aliás, nenhum direito é absoluto, como amplamente aceito nos meios jurídicos. Não é aceitável que o exercício do direito de A afronte ou anule o direito de B. Uma pessoa, qualquer pessoa, não pode dizer, escrever ou propagandear o que bem quiser e entender. Um dos mais claros limites à liberdade de manifestação de pensamento é justamente a não utilização desse direito para exaltar ou incentivar a prática de crimes.
Assim, quando o Poder Público, especialmente o Poder Judiciário, adota medidas duras e enérgicas contra práticas ilícitas nas redes sociais cumpre a Constituição e as leis em vigor. Em última instância, busca-se a preservação do pacto civilizatório. É evidente que um direito, como o da liberdade de manifestação de pensamento, não pode ser colocado acima dos demais, sobretudo para diminuí-los ou subjugá-los. Nessa linha, não pode ser confundida com censura (indevida e ilícita) as restrições necessárias aos excessos, abusos e ilicitudes cometidos e reiterados no campo das comunicações, dentro e fora das redes sociais.
Evidentemente, não existe perfeição (ou ausências de erros) na atuação do Poder Judiciário no Brasil. Para esses desvios do caminho da legalidade e da juridicidade devem ser utilizados os recursos processuais pertinentes e a legítima crítica em padrões respeitosos e republicanos. São inaceitáveis os ataques à soberania nacional, as ofensas pessoais às autoridades constituídas e a vil tentativa de resolver os inevitáveis conflitos em uma sociedade complexa e plural por meio da violência física, psicológica ou da força dos interesses econômicos mais mesquinhos.
As questões relacionadas com a prática de crimes especialmente graves e outros ilícitos que afrontam aspectos fundamentais da interação social não podem ser simplificados como meros embates entre as esquerdas e as direitas (nos plurais).
Sou daqueles que defendem com veemência a existência de princípios civilizatórios básicos ou fundamentais que precedem o debate acerca de escolhas institucionais relevantes. Ao longo da história da humanidade, muito sangue, suor e lágrimas foram “investidos” na construção de um acordo civilizatório que proíbe uma série de condutas visceralmente atentatórias à dignidade da pessoa humana, síntese jurídica dos direitos, garantias e valores mais relevantes para o convívio em sociedade.
O respeito às integridades física e moral, às liberdades de locomoção, de opção religiosa, de orientação sexual, de manifestação de pensamento, a vedação de preconceitos e discriminações, a inviolabilidade da vida privada, da moradia e das correspondências e a inafastabilidade de acesso ao Judiciário são alguns dos direitos que compõem o “mínimo civilizatório”. Esses direitos e garantias não são pautas ou temas de direita, centro ou esquerda. A efetividade desses direitos e garantias são elementos inafastáveis para qualificar como digno o convívio humano em qualquer parte do globo terrestre, independentemente do governo instalado. Não custa lembrar, nesse sentido, que os direitos e garantias individuais inscritos na Constituição brasileira de 1988 não podem ser suprimidos sequer por emendas ao Texto Maior.
É preciso afirmar com todas as letras que o debate sobre o “mínimo civilizatório”, o conjunto de direitos e garantias destacados, não se coloca como um enfrentamento entre esquerdas e direitos (no plural). Trata-se de um debate sobre a civilização e a barbárie. Negar os direitos e garantias fundamentais significa retroceder absurdamente no projeto de afirmação da humanidade rumo à barbárie, ao estado de selvageria e ao império da lei do mais forte.
A discussão sobre os rumos à esquerda ou à direita, sobretudo de um governo, somente se coloca depois do necessário acordo sobre o “mínimo civilizatório”. Assim, é completamente legítimo o debate sobre o tamanho do Estado, o papel do Estado nas atividades econômicas, a formatação das políticas públicas e a forma e a extensão da participação popular. No entanto, são inaceitáveis os discursos, os escritos e as demais ações que miram restringir e negar, de forma claramente indevida, direitos e garantias consagrados nos principais documentos jurídicos da humanidade.
***
Aldemario Araujo Castro é advogado, Mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional