
(Foto: Reprodução de imagem do trailer do filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles)
No dia 2 de março de 2025, o filme Ainda Estou Aqui conquistou o primeiro Oscar do Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional. Naquele domingo de Carnaval, em clima de torcida organizada, milhares de brasileiros acompanharam a cerimônia transmitida pela Globo e por diversas plataformas de streaming, torcendo pela estatueta na maior premiação da indústria cinematográfica americana.
Apesar da declaração da protagonista do filme, Fernanda Torres (Eunice Paiva), de que ganhar ou perder a estatueta não era um parâmetro para medir o sucesso do longa, chegar ao topo da lista de indicações no cenário americano é um indicativo de que o filme ultrapassou diversas barreiras e ganhou fama mundial.
Muito já se falou sobre a obra dirigida por Walter Salles, que traz a história do ex-deputado Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello), desaparecido em 1971, durante a Ditadura Militar no Brasil, após ser levado por agentes de segurança para prestar depoimento. O corpo do deputado nunca foi encontrado, e o filme relata a luta de sua esposa, Eunice Paiva (interpretada por Fernanda Torres), na busca por respostas sobre o desaparecimento do marido, ao mesmo tempo em que tenta seguir com sua vida e educar seus cinco filhos.
No Brasil, a produção alcançou recordes de bilheteria: mais de cinco milhões de pessoas já assistiram ao filme, e, segundo a Agência Nacional do Cinema (ANCINE), a obra já é considerada a quinta maior bilheteria do cinema nacional, com mais de R$ 85 milhões arrecadados desde sua estreia, em 7 de novembro de 2024.
Não há dúvidas quanto ao sucesso de público, mas há outra perspectiva que pode ser explorada para além dos números e cifras. O longa retrata uma ferida no tecido social brasileiro, expondo um capítulo da nossa história que segue sendo ignorado: somos um país que teme sua própria memória e tem dificuldade de assumir suas tragédias políticas e coletivas.
Uma das iniciativas para preservar a memória foi a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída pela Lei 12.528/2011, somente 50 anos após o Golpe Militar. Segundo apurações da Comissão, entre 1964 e 1985, 191 brasileiros que resistiram à ditadura foram mortos, 210 ainda estão desaparecidos e apenas 33 corpos foram localizados, totalizando 434 pessoas mortas ou desaparecidas. O relatório aponta que 377 pessoas foram responsáveis, direta ou indiretamente, por torturas e assassinatos durante o período.
No dia 28 de agosto de 1979, foi aprovada a Lei 6.683/79, conhecida como Lei da Anistia, que permitia a emissão de atestados com expressões como “paradeiro ignorado” ou “morte presumida” para os desaparecidos políticos. A lei também eximiu de responsabilidade os agentes do Estado envolvidos em torturas e assassinatos.
Esta Lei de Anistia libertou presos políticos e permitiu o regresso de exilados, mas concedeu também uma ‘autoanistia’ aos agentes do Estado envolvidos em repressão, tortura e assassinatos após o golpe de 1964. Os presos políticos envolvidos em ‘crimes de sangue’ não foram beneficiados pela anistia; permaneceram encarcerados e só foram libertados porque a reformulação da Lei de Segurança Nacional atenuou suas penas. Entretanto, os agentes do Estado que praticaram torturas e assassinatos, e ocultaram cadáveres de presos políticos, nunca foram condenados, julgados ou indiciados (PUC-SP, Comissão da Verdade).
A falta de punição para esses crimes reacendeu um novo debate no cenário político brasileiro, especialmente após ataques recentes contra as sedes dos Três Poderes, em Brasília.
Em fevereiro de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a discutir a constitucionalidade da aplicação da Lei de Anistia (Lei 6.683/1979) ao crime de ocultação de cadáver. Durante a sessão, o ministro Flávio Dino questionou a “possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia para o crime de ocultação de cadáver [crime permanente], cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto após sua promulgação, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº 6.683/79”.
O debate foi motivado pela denúncia apresentada em 2015 pelo Ministério Público Federal (MPF) contra os militares do Exército Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura (falecido), acusados de ocultação de cadáver e homicídio durante a Guerrilha do Araguaia.
Outra possibilidade em análise é a reavaliação da Lei da Anistia pelo STF no caso do deputado Rubens Paiva. Segundo a Procuradoria Geral da República (PGR), cinco militares foram acusados de envolvimento na morte do ex-deputado: José Antônio Nogueira Belham, Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos, Jurandyr Ochsendorf e Jacy Ochsendorf. No entanto, devido à demora no julgamento do processo, três deles já faleceram e sem serem condenados.
A reavaliação da Lei da Anistia pode abrir novas interpretações para crimes cometidos durante a Ditadura Militar e ataques reiterados à democracia. Daí a importância de pensar cinema como ferramenta de transformação social. No caso de Ainda Estou Aqui, evidencia-se a relevância de contar histórias e preservar a memória – uma função essencial também do jornalismo, como destaca Francisco Karam (2014, p. 95):
É necessário, no entanto, dizer que o jornalismo não pode simplesmente conviver com as coisas ‘belas da vida’. Precisa tratar das tragédias que essa mesma vida carrega, para inclusive, valorizar as consideradas grandiosas. Os valores sociais só podem ser sentidos, tanto pela razão como pela paixão e emoção, se estiverem ligados socialmente à diversidade que se expressam. Do contrário, se houvesse só beleza, a própria palavra não teria sentido de existir, já que não haveria nada possível de ser nomeado fora dela. Seria uma redundância. Se há coisas que não são da esfera do belo, do útil, do prazer, é porque há algo de feio, inútil e doloroso. O universo do jornalismo precisa lidar com isso, é da sua essência, é para isso que existe, não para esconder as coisas do mundo”.
A beleza do filme reside, talvez, na capacidade de mostrar que a dor, o luto, a tragédia, a ausência e a indiferença diante de um dos períodos mais sombrios e difíceis da história do nosso país compõem o incômodo que nos leva a refletir sobre nossa memória social. Os reflexos da ditadura ainda estão aqui, e é fundamental não esquecer de lutar contra os riscos e retrocessos na política e na sociedade.
Texto publicado originalmente em objETHOS.
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Andressa Oliveira é jornalista, é Mestre em Letras e pesquisadora do objETHOS.