(Digressão ligeira em busca da origem de uma ideia)
Na data de 7 de junho, comemora-se no Brasil o Dia da Liberdade de Imprensa. Ótimo, bom que exista a efeméride cívica. Mas, na verdade, deveríamos cultuar esse valor o ano inteiro. Precisamos dele a cada minuto. Mas por quê, exatamente? Para responder a essa pergunta, vai aqui um artigo breve.
A afirmação de que a imprensa livre é irmã gêmea da democracia virou um chavão, um lugar comum. Mais do que uma obviedade, uma platitude, é uma frase feita — e esvaziada. Sim, são irmãs gêmeas, mas e daí? Além dos slogans, tem sido mais raro encontrarmos explicações que deem conta da razão dessa liberdade. Por que ela precisa existir?
Historicamente, podemos entender que a emergência das revoluções iluministas no século XVIII tiveram na liberdade de expressão um dos fundamentos do novo poder — que, exatamente, brotava de baixo para cima. Desde então, não há como conceber liberalismo sem liberdade de imprensa — assim como, sem ambos, não haveria a formação da democracia, que se construiria bem mais tarde, no curso de sucessivas transformações sociais. Liberalismo não é sinônimo de democracia, bem sabemos. Aliás, somente partir de meados do século XX a democracia começou a se tornar uma experiência mais difundida entre os povos. Não nos esqueçamos de que as mulheres conquistaram o direito de voto na Suíça entre as décadas de 1970 e 1990. No mundo todo, na média, a democracia ainda é precária, restrita, frágil e se encontra em construção. No Brasil, a democracia ainda é para poucos, bem poucos. E, em todos os lugares, sem liberdade de imprensa — plena e progressivamente inclusiva — a democracia não passa de um blefe retórico.
Isto posto, vale perguntar: mas, se é assim, para que serve essa liberdade? Resposta curta: para que, bem-informados, os comuns do povo se capacitem para delegar o poder. Sabemos que, nos Estados em que existe a presunção de que o poder emana do povo, a imprensa aparece como a instituição encarregada de informar os cidadãos com independência. Nessa perspectiva, o ato de informar jornalisticamente só é efetivo quando é crítico; a informação de valor é aquela que brota de um exercício de olhar crítico, vigilante e investigativo na direção do poder. Portanto, para informar, o jornalista vigia o poder.
Quando se diz que a imprensa é uma instituição (um enfeixamento de práticas sociais específicas, com linguagens e métodos próprios, amalgamadas numa cultura diferenciada das demais que se reproduz no tempo, em prazos que atravessam gerações) o que se quer dizer é que ela é maior que a somatória dos jornais existentes. Nessa instituição, convivem olhares distintos, conflitantes, em uma diversidade de redações que é tanto mais vibrante e produtiva quanto mais é variada. A instituição não se reduz ao conjunto dos jornais mais conhecidos, mas conforma algo maior, tanto na linha do tempo quanto na profundidade do instante. A liberdade é conquistada pela instituição da imprensa à medida que essa liberdade representa o direito à informação e à comunicação de todo o público e de cada cidadão. Se a instituição da imprensa é forte, é livre, e a democracia também é.
Com isso, chegamos à parte mais aparente, e mais fácil da razão de ser da liberdade de imprensa, mas há mais um ponto, o mais essencial. Normalmente, os defensores do jornalismo dizem que as redações profissionais são insubstituíveis porque só elas apuram e difundem a verdade factual. Não é bem assim. É certo que os bons órgãos de imprensa buscam a verdade dos fatos e, quando têm um bom dia, até entregam às suas audiências relatos mais próximos do que verdadeiramente se passou.
Mas não é exatamente por isso que precisamos da liberdade de imprensa, ou seja, não precisamos da imprensa para que os jornais nos digam a verdade. Não é assim que funciona. Bons jornais repudiam a mentira. Por isso são insubstituíveis. Daí a dizer a verdade pronta e acabada é outra conversa.
Já nos anos 1920, um então jovem jornalista americano, Walter Lippmann, brincava com seus interlocutores dizendo que ninguém poderia esperar de um diário que qualquer um comprava na banca por uns poucos centavos de dólar fosse lhe entregar assim de mão beijada nada menos que a verdade. Não sejam tão otimistas, ele parecia advertir. No máximo, os jornais poderiam sinalizar os acontecimentos e, a partir disso, cada leitor poderia montar a sua leitura sobre a realidade. Sinalizar os eventos já é uma ambição grande e complexa demais — e suficientemente vital.
Não devemos esperar a verdade suprema de um veículo jornalístico. Devemos, ao contrário, bem ao contrário, esperar que ele questione o poder e cheque os fatos, ininterruptamente. Se fizer isso, cumprirá o dever que lhe cabe.
Com isso, chegamos ao núcleo de uma ideia. Com seus diversos modos de ver e pensar o mundo, com sua necessária diversidade de opiniões e crenças, com seus conflitos e suas discrepâncias, a imprensa livre não entrega a ninguém a verdade embrulhada para presente, mas pode, com um alto grau de eficiência, inibir as mentiras que vêm do poder. Dizendo de outra forma: uma sociedade que conta com uma imprensa forte é uma sociedade menos suscetível às mentiras que vêm do poder; uma sociedade que conta com uma instituição de imprensa realmente livre está o tempo todo mobilizada para duvidar das imposturas daqueles que exercem o poder, está o tempo todo embalada por um ceticismo saudável, menos vulnerável a manipulações.
Enfim, por que você acha que o poder que aí está, hoje, no Brasil, tem tanto ódio de jornalistas e de empresas jornalísticas?
***
Eugênio Bucci é jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde dá aulas de graduação e pós-graduação.