A campanha eleitoral mais eletrizante das últimas décadas é também a campanha que mais pode nos ensinar sobre comunicação e participação cívica. A violência política nas ruas se soma ao esgoto de ódio e discriminação nas redes sociais. O resultado não é só um país ultra-polarizado, mas uma nação dividida com instituições sendo corroídas e a aparente sensação de fim de mundo. Olhe para os lados e pergunte: quem está confortável nessa atmosfera tóxica que inibe a manifestação de preferência política, que desestimula o voto e que planta a desconfiança em tudo? Quem se sente seguro diante do açude de mentiras que se tornou o país? Aliás, talvez esteja justamente na profusão de mentiras o combustível que alimenta o debate público em torno da liberdade de expressão.
Nas últimas semanas, provocada por partidos, imprensa e sociedade organizada, a Justiça Eleitoral tem agido para reafirmar os limites da lei, aplicando sanções, concedendo direitos de resposta, determinando remoção de conteúdo na internet e tomando para si poderes de polícia. Na verdade, essa força já poderia ter sido utilizada em eleições passadas, e como não foi, vem a crítica de que esteja sendo dura e implacável demais. Mas como demarcar linhas num campo de batalha convulsionado? Como aplicar regras que foram deliberadamente ignoradas e que só são lembradas de forma distorcida ou conveniente? É claro que a Justiça Eleitoral poderia ter servido esses remédios amargos há mais tempo, e que fazer isso agora – em plena campanha – pode ser acusada de casuística, mas não é nada disso. Diferente dos Estados Unidos ou de outros países, o Brasil tem uma justiça especializada, dedicada a arbitrar e a fazer funcionar o sistema eleitoral. Cabe a ela aplicar as regras, lembrar dos limites fixados na lei e punir abusos. No caso das sanções à Jovem Pan News, não houve censura, não houve cerceamento da opinião, mas tão somente a aplicação de medidas para conter o espalhamento de mentiras. O TSE apenas colocou os pingos nos is. Claro que a emissora pode se queixar, mas afirmar que é vítima de perseguição ou censura é insistir na manobra de moldar os fatos conforme a sua conveniência. Claro também que o TSE não está imune a cometer erros, mas erros também se cometem quando não se age a tempo.
A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são dois direitos essenciais para a vida democrática, e elas ajudam a sustentar uma vida coletiva que persiga o bem comum, a igualdade de oportunidades, a troca de ideias e a participação dos indivíduos e organizações. Mas a vida democrática também se apoia na clareza das leis, no funcionamento das instituições, na transparência pública, e na obrigatoriedade de todos assumirem e responderem por seus atos. Em termos práticos, toda pessoa pode se sentir livre para opinar sobre qualquer assunto, mas ela vive em sociedade e está submetida às regras que foram criadas para permitir seu convívio pacífico. A opinião emitida pode ser debatida e contradita no debate público, mas também pode causar danos e, a partir disso, levar a uma contestação judicial, por exemplo. Minha opinião não expressa apenas o que penso ou sinto, mas também pode influenciar um grupo, afetar a reputação de alguém, causar dor e sofrimento. Minha opinião pode inspirar e deprimir, elevar espíritos e acirrar ânimos, estimular a participação e mobilizar insurreições. Por isso, ao exercer a minha liberdade de expressão, assumo também o compromisso de arcar com as consequências daquilo que exteriorizo. Não existe nenhuma liberdade sem a sua irmã siamesa, a responsabilidade. Sem essa contraparte, a liberdade corre o sério risco de, contraditoriamente, ser autoritária e impositiva. A responsabilidade não é uma autocensura, mas a consciência de que também podemos causar mal quando exercitamos algo tão profundamente emancipador, como a liberdade.
Nada é absoluto
A liberdade de imprensa é importante para a democracia porque permite que um sistema profissional – o jornalismo – fiscalize e acompanhe criticamente os poderosos. Mas essa mesma liberdade não autoriza jornalistas e meios de comunicação a mentir e a destruir reputações a pretexto de estar manifestando opiniões. Nenhuma liberdade é infinita ou absoluta. Imaginar essa liberdade é querer poderes totais, capazes de devorar todas as outras liberdades.
Nas leis brasileiras, não existe nenhum dever absoluto, assim como não há direito absoluto. Fundamental na vida de todos, a liberdade de ir e vir me impede de invadir a casa de alguém. Essencial à democracia, a liberdade de expressão não me autoriza a ofender, agredir, atacar e humilhar qualquer pessoa apenas porque assim decido. Toda liberdade traz em si a necessidade de que precisamos nos conter, já que se não houver isso, há um risco enorme de a minha liberdade atropelar as liberdades daqueles que me cercam. A liberdade é um direito que desperta na gente um sentimento de plenitude, de poder e capacidade infinitas, mas isso é uma ilusão. Se vivida sem limites, a liberdade é apenas um exercício de egoísmo, do individualismo autoritário que impõe sobre o outro a nossa vontade, como única possibilidade de ação.
Há quem culpe a polarização política como a fonte dos males que afligem o país, mas o problema não está aí. O sistema que ajudamos a construir para eleger nossos governantes alimenta e se apoia na ideia de polarização. Pelas regras, se nenhum candidato é escolhido por 50% dos votos mais um, fazemos uma nova consulta, que chamamos de segundo turno. Os dois mais bem votados disputam. Logo, é um sistema que estimula a polarização política, mas ela é constituinte da ideia de escolher, que vai levar à divisão do eleitorado. Isso não é um problema, insisto. A divisão permite que uma parcela da sociedade atue como oposição e fiscalize a outra, que assumiu o poder. O problema não está na polarização, mas na fragmentação da sociedade que impede que ela construa consensos mínimos para solucionar problemas comuns. E é essa fragmentação que estamos experimentando no Brasil nos últimos anos, com manobras para desacreditar as instituições e para espalhar a descrença generalizada nas nossas capacidades. Esse envenenamento do debate público é engrossado por novas dinâmicas da mentira, que se espalham não só para fazer prevalecer uma visão de mundo, mas para desestabilizar crenças e manipular consciências. Não é pouca coisa, e em período eleitoral, torna o cotidiano irrespirável.
O império das mentiras
Historicamente, campanhas eleitorais são o império da mentira, momento em que legendas e candidatos tentam convencer pessoas à base de promessas muitas vezes incumpríveis, bombardeando os eleitores com todo tipo de conteúdo. Sempre convivemos com as mentiras de campanha, mas é preciso reconhecer que elas mudaram bastante ultimamente. Antes, candidatos mentiam sobre seus feitos e capacidades de concretizar o que prometiam. A mentira era o andaime para ficar mais alto e evidente diante da multidão de propostas. De uns tempos pra cá, a mentira também passou a ser usada como arma de ataque ao oponente, forma de destruição pública de sua imagem e caráter. Assim, ela funciona como um rolo-compressor, passando por cima do rival, reduzindo a pó sua reputação e presença política. Se antes a mentira inflava o próprio candidato, agora, ela se dedica mais a desidratar seu concorrente, drenando forças, buscando sua aniquilação.
Cabe, sim, à Justiça Eleitoral enfrentar o problema da mentira como combustível do caos desinformativo, que se espalha como metástase na sociedade brasileira. Mas cabe também ao jornalismo responsável, ético, compromissado com a democracia, o bem comum e o interesse público. Cabe também às grandes plataformas digitais atuarem para reduzir o alcance dessas mentiras, mesmo que isso afete seu modelo de negócios. Parece ingênuo e insano propor essa ação – aparentemente autofágica e suicida -, mas insistir na viralização do conteúdo mentiroso e fraudulento é ajudar a corroer o próprio tecido conjuntivo da sociedade. E cabe também a cada um de nós também renunciar ao papel de mentiroso contumaz, de disseminador de falsidades, de enganador e trapaceiro.
A mentira mudou um pouco, mas não mudaram os mentirosos. Eles continuam a gritar desesperados quando são pegos na mentira, e se esgoelam dizendo que suas liberdades foram arrancadas. Mas ninguém pode esperar que a sua liberdade lhe permita mentir, ofender, destruir, distorcer e fraudar. Nesses casos, não estamos falando de liberdade, mas do sequestro autoritário de uma ideia. A liberdade é uma ideia que só tem sentido se permitir a emancipação humana e promover o respeito mínimo que todos nós exigimos.
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS.