No campo aberto dos desejos, crença e torcida chutam para escanteio a lógica. Se a política entra em jogo, então, os ânimos se acirram e sobram pontapés — não muito diferente do que se viu com a repercussão do artigo de Hélio Schwartsman [Por que torço para que Bolsonaro morra, publicado na Folha de S.Paulo, em 07/07/2020], e que acabou gerando mais dois artigos diante da ameaça do ministro da Justiça de abertura de inquérito contra o jornalista por calúnia, baseado na suposta violação ao artigo 26 da Lei de Segurança Nacional.
Até aí não seria de se estranhar a polêmica, devido ao tencionado ambiente político. E já se podia presumir alguma reação do governo, quem sabe sob o comando do gabinete do ódio, ainda que acuado pelas últimas investigações e recente remoção de perfis (no Facebook) ligados a pessoas próximas ao presidente, de seus filhos e de políticos de sua base de apoio.
A reação do governo vem com um ranço de censura pela tentativa de imputar um crime à expressão de uma opinião legítima, com base numa argumentação racional, num provocativo questionamento filosófico sustentado pela ética consequencialista (subentendendo-se a comparação com a ética kantiana). E isso seria somente irônico não fosse habitual desse governo investir contra a imprensa e adversários, lançando mão de factoides sob a justificativa da liberdade de expressão.
Mas chama atenção a reação no próprio meio jornalístico, em que muitos condenaram o articulista por motivos como o título infeliz do artigo, por suscitar o radicalismo ou aprofundar a (falsa) polarização nesse cenário conturbado, pela falta de aprofundamento ou caráter infantil da crítica, sobretudo pelo sentimento condenável do ponto de vista da moral cristã.
Parece que desqualificar o jornalista, apoiado numa pretensa intenção de salvaguardar algum verniz civilizatório em meio ao desgoverno na condução suicida do trólebus governamental diante de uma crise sanitária/econômica sem precedentes, foi a opção menos espinhosa para muitos, travestida numa forma de apaziguamento moral e boa fé cristã.
Mas essa boa fé não parece sustentar tamanha “condescendência” (ou seria relativismo?) sem prejuízos morais, pois que restrita ao campo da consciência pessoal, fora da história como busca de transformação da realidade dos seres humanos — a suposta defesa do valor absoluto da vida acaba revelando que há sim em nossa sociedade uma escala de valoração na qual a vida de uns vale mais que a de outros.
Em outras palavras, na perspectiva da lógica liberal da exploração do trabalho, de vidas, obedecendo a uma necessária pax de mercado, os corpos de uns são mais exploráveis que de outros. E não importa, sob essa régua moral, que tais corpos sejam bovinamente empurrados ao sacrifício, em meio a uma pandemia, contanto que se mantenha o status quo.
De qualquer forma, o contexto — para voltar ao exercício filosófico proposto pelo artigo de Hélio Schwartsman – traz todos os elementos necessários para sua análise, de acordo com a situação da filosofia na modernidade posta na questão do sentido, cujo ponto de partida é a própria configuração dos enunciados e cujo sentido é depreendido de sua própria gramática de referência. Diante da homogeneização corriqueira das ideias, da imposição de verdades absolutas, da hegemonia da univocidade abstrata do pensamento, o questionamento tornou-se incômodo — e a filosofia ficou sobrando em campo.
A linguagem é o lugar crucial do pensamento — e matéria essencial da vida humana, portanto, fundamental, entre tantas outras áreas do conhecimento, para o jornalismo — que falte capacidade de interpretação (o mínimo de hermenêutica) denota ou má-fé ou que nossa crise é muito mais grave, uma vez que as aspirações mágicas do desejo, crenças e torcida parecem substituir a racionalidade.
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Afonso Caramano é escritor, autor do livro de contos Ao contrário, um caminho (11 Editora, Jaú/SP – 2015).