O governo do Estado de São Paulo distorceu a Lei de Acesso a Informação (LAI) ao determinar de forma extensiva um prazo de 50 anos de sigilo para todos os registros e boletins de ocorrência e dados de qualificação de autoridades estrangeiras.
Segundo fontes ouvidas pelo JOTA, a Resolução SSP – 7, publicada na primeira sexta-feira de fevereiro (05/02) viola dois aspectos basilares da Lei 12.527: 1) o princípio de que o sigilo e acesso a cada documento público será avaliado caso e caso; e 2) a determinação de que o conteúdo de documentos deve ser divulgado parcialmente, quando houver trecho que possa vir a público sem representar riscos.
Constitucionalista reconhecido no meio jurídico, o secretário de Segurança de São Paulo, Alexandre de Moraes, assinou a resolução determinando diferentes graus de sigilo para diversos documentos produzidos pelas polícias Civil e Militar do Estado.
As regras de acesso a documentos públicos são violadas, segundo fontes, porque o governo define uma restrição de acesso de 50 anos para alguns dados. Este prazo não seria aplicável para um tipo de documento ou casos gerais, como boletins de ocorrência, por exemplo. Apenas em casos específicos, que precisam ser avaliados individualmente pelo governo.
A título de ilustração, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informa que foram produzidos 709.410 boletins de ocorrência no último trimestre do ano passado. Uma média de 7.882 documentos diariamente.
Como funciona a duração do sigilo
Diferentemente da classificação de sigilo, que tem duração máxima de 25 anos segundo a legislação federal e a regulamentação estadual, a restrição de acesso pode ultrapassar um quarto de século e chegar a 100 anos conforme previsto no artigo 31 da LAI, quando houver risco “à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”.
Ao definir que todo e qualquer boletim e registro de ocorrência poderá ser restrito por 50 anos, o governo de São Paulo ultrapassa as margens legais para tentar definir um novo paradigma, segundo fontes. O problema é que a própria Lei de Acesso a Informação diz, por exemplo, que a pessoa citada no documento pode autorizar a divulgação – previsão que se choca com a Resolução da Secretaria de Segurança Pública.
A LAI também define que a restrição de acesso poderá ser suspensa em casos de “realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem”, “defesa de direitos humanos” e ordem judicial.
“A restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”, diz a LAI.
Procurado pela reportagem, o secretário Moraes não quis se manifestar.
Resolução da Secretaria de Segurança Pública
Segundo a resolução, a restrição de acesso de 50 anos será aplicada aos “dados de qualificação e cadastro de dignitários, autoridades e representantes consulares envolvidos em execução de medidas de proteção” e “histórico de registro digital de ocorrência e boletim eletrônico de ocorrência, quando não for possível a proteção dos dados pessoais dos envolvidos e testemunhas”.
Outros documentos produzidos pelas polícias foram classificados, permanecendo fora do alcance público por um período muito menor. Quando tratar do “planejamento e execução de medidas de proteção de dignitários, autoridades e representantes consulares”, por exemplo, o documento estadual se tornará público em cinco anos.
Em silêncio
Um mês após criticar a forma pela qual o Governo de São Paulo lida com o sigilo de documentos públicos e aplica a Lei de Acesso à Informação, nem o Conselho de Transparência da Ouvidoria Geral do Estado de São Paulo (OGE) nem o ouvidor geral quiseram se posicionar sobre a resolução da Secretaria.
Em entrevista ao JOTA, o ouvidor geral do Estado, Gustavo Úngaro, afirmou que, no momento, a ouvidoria não pode tomar nenhuma providência.
“Não cabe ao órgão classificar ou desclassificar os documentos. Se houver algum apontamento, vamos avaliar quais os procedimentos necessários”, disse.
A reportagem procurou, por e-mail, a assessoria de imprensa da Ouvidoria Geral do Estado para falar sobre o caso com a presidente do Conselho de Transparência, Eunice Prudente. Foi informada que, como a questão compete à Secretaria de Segurança Pública, a presidente do conselho não se manifestaria.
Para o presidente da Comissão de Gastos Públicos da OAB São Paulo, Jorge Eluf Neto, a medida do governo “não tem cabimento”.
“Quem tem que classificar se os dados devem ou não ser divulgados são as pessoas envolvidas nas ocorrências. Essa classificação por parte de órgão estatal não tem sentido”, afirmou.
Além disso, em seu entendimento, o sigilo dificultaria quem faz o trabalho estatístico de índices de de criminalidade, por exemplo.
Divulgação parcial dos documentos
O promotor de Justiça Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, disse que vê a decisão do governo com muita preocupação. “Quanto menos transparência, mais poder concentrado, mais corrupção. Essa é a dinâmica”, afirma.
Segundo ele, se o intuito do governo é proteger as vítimas e testemunhas, que se determine sigilo aos campos qualificativos dos BO’s, e não a todo o documento. Ele não tem dúvidas de que isso é possível, principalmente em uma era tecnológica.
A reportagem do JOTA entrou em contato por telefone com o Acervo Público do Estado de São Paulo. O presidente da Comissão Estadual de Lei de Acesso à Informação, Izaias Santana, que também é representante do Conselho de Transparência da OGE, afirmou que o governo está “tranquilo” em relação à medida tomada pela Secretaria de Segurança Pública.
Segundo ele, a classificação está em “perfeita sintonia com a Constituição Federal”.
“O dever à informação deve ser conciliado à proteção da vida privada”, declarou. No entendimento dele, ao contrário do que disse o representante da OAB-SP, o cidadão que deve dar publicidade ao documento, e não a exceção, que, por sua vez, compete ao estado.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, em nota publicada em seu site, afirma que reportagens veiculadas nos veículos de comunicação estão equivocadas, e que “o conteúdo dos Boletins de Ocorrência só não poderá ser divulgado quando expuser dados individuais do cidadão ou permitir a identificação de envolvidos e testemunhas, conforme determina a legislação”.
Leia a Resolução 7 da Secretaria de Segurança Pública:
Dispõe sobre a classificação de documentos, dados e informações pessoais e sigilosos no âmbito da Secretaria da Segurança Pública, nos termos da Lei 12.527/11 e do Decreto estadual 58.052/12, alterado pelo Decreto estadual 61.559/15
O Secretário da Segurança Pública,
CONSIDERANDO que o art. 5o, XXXIII, da Constituição Fede- ral, dispõe que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou legal, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
CONSIDERANDO as regras estabelecidas na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527, de 18-11-2011) e a regulamentação existente no âmbito do Estado de São Paulo a respeito do acesso à informação consubstancia-se nos disposto no Decreto 58.052, de 16-05-2012, alterado pelo Decreto 61.559, de 15-10-2015;
CONSIDERANDO a política de transparência que informa os atos e ações do Estado de São Paulo;
Resolve expedir a seguinte Resolução:
Artigo 1o. Esta Resolução dispõe sobre os procedimentos a serem observados no âmbito da Secretaria da Segurança Públi- ca, com a finalidade de garantir a efetividade do direito funda- mental de acesso à informação dos órgãos públicos, ressalvadas as informações pessoais e sigilosas.
Parágrafo único. Subordinam-se à disciplina desta Reso- lução, o Gabinete da SSP, a Polícia Militar, a Polícia Civil e a Superintendência da Polícia Técnico Científica, que analisarão os pedidos de acesso relativos as suas respectivas atribuições.
Artigo 2o. São considerados passíveis de restrição de acesso, nos termos desta Resolução, duas categorias de documentos, dados e informações:
I – Pessoais: aqueles relacionados à pessoa natural identifi- cada ou identificável, relativos à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais;
II- Sigilosos: aqueles submetidos temporariamente à restri- ção de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado.
§ 1o. Os documentos, dados e informações pessoais terão seu acesso restrito a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem, independentemente de classifi- cação de sigilo, nos termos da legislação em vigor.
§ 2o. Não poderá ser negado acesso à informação necessá- ria à tutela judicial ou administrativo de direitos fundamentais.
Artigo 3o. Os documentos, dados e informações que versem sobre condutas que impliquem violações dos direitos humanos praticadas por agentes públicas ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso.
Artigo 4o. São consideradas imprescindíveis à segurança da Sociedade e do Estado, nos termos dos incisos III e VIII, do artigo 23 da Lei 12.527/11, e, portanto, classificadas como informações sigilosas de CARÁTER RESERVADO, todas aquelas relacionadas a distribuição, alocação e registros cadastrais diretamente relacio- nados a operações policiais da Secretaria da Segurança Pública, Polícia Militar, Polícia Civil e Superintendência da Polícia Técnico Cientifica, e, notadamente, os documentos, dados e informações descritos na TABELA I, em anexo.
Artigo 5o. São consideradas imprescindíveis à segurança da Sociedade e do Estado, nos termos dos incisos III, VII e VIII, do artigo 23 da Lei 12.527/11, e, portanto, classificadas como informações sigilosas de CARÁTER SECRETO, todas aquelas relacionadas à atuação logística e às atividades operacionais, de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações e as referentes à estrutu- ração física da Secretaria da Segurança Pública, Polícia Militar, Polícia Civil e Superintendência da Polícia Técnico Cientifica, e, notadamente, os documentos, dados e informações descritos na TABELA I, em anexo.
Artigo 6o. São consideradas imprescindíveis à segurança da Sociedade e do Estado, nos termos dos incisos III, V e VIII, do artigo 23 da Lei 12.527/11, e, portanto, classificadas como infor- mações sigilosas de CARÁTER ULTRA SECRETO, todas aquelas relacionadas à inteligência policial e às informações estratégicas sobre criminalidade organizada, estruturação tecnológica e de comunicações da Secretaria da Segurança Pública, Polícia Mili- tar, Polícia Civil e Superintendência da Polícia Técnico Cientifica, e, notadamente, os documentos, dados e informações descritos na TABELA I, em anexo.
Artigo 7o. São consideráveis dados pessoais, nos termos do artigo 31 da Lei 12.527/11, e, portanto, classificadas como informações de CARÁTER PESSOAL, todas aquelas relacionadas à pessoa natural identificada ou identificável, relativas à inti- midade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais, e, notadamente, os docu- mentos, dados e informações descritos na TABELA I, em anexo.
Artigo 8o. Qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso diretamente ao órgão responsável, que, deverá auto- rizar ou conceder o acesso imediato às informações.
§ 1o. O pedido deverá conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida.
§ 2o. Não sendo possível o acesso imediato, nos termos dos § 1o e 2o, do artigo 11 da Lei 12.527/11, a informação deverá ser fornecida em prazo não superior a 20 (vinte) dias, prorrogáveis, fundamentadamente, por 10 (dez) dias.
§ 3o. Sem prejuízo da segurança e da proteção das informa- ções, o órgão responsável poderá oferecer meios para que o pró- prio requerente possa pesquisar a informação de que necessitar.
§ 4o. Em não possuindo a informação, o órgão requerido deverá comunicar o requerente e indicar, se for do seu conheci- mento, o órgão ou a entidade que a detém.
§ 5o. Em se tratando de informações de responsabilidade da Polícia Militar, da Polícia Civil ou da Superintendência da Polícia Técnico Científica, porém dirigidas ao Gabinete da SSP, o pedido será encaminhado ao respectivo órgão, comunicando-se o requerente.
§ 6o Na hipótese do parágrafo anterior, o prazo será conta- do a partir do recebimento do pedido pelo órgão competente.
Artigo 9o. Nos termos do artigo 4o do Decreto 61.559, de 15-10-2015, a Chefia de Gabinete da SSP deverá providenciar junto à Polícia Militar, Polícia Civil e Superintendência da Polícia Técnico Científica o envio dos indeferimentos dos pedidos de acesso a informações formulados e negados com base em sigilo instituído pela Portaria PM6-3/30/13, de 10-12-2013, do Comandante Geral da Polícia Militar e da Portaria DGP 31/2013 do Delegado Geral de Polícia, para reanálise do Secretário da Segurança Pública.
Artigo 10. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando todas as disposições em contrário.
Segundo a Lei 12.527, a Lei de Acesso a Informação, cabe a definição de sigilo pelos seguintes motivos e prazos:
Seção II
Da Classificação da Informação quanto ao Grau e Prazos de Sigilo
Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:
I – pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
II – prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;
III – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
IV – oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;
V – prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
VI – prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;
VII – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou
VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.
Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada.
§ 1o Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista no caput, vigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes:
I – ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;
II – secreta: 15 (quinze) anos; e
III – reservada: 5 (cinco) anos.
§ 2o As informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
§ 3o Alternativamente aos prazos previstos no § 1o, poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso a ocorrência de determinado evento, desde que este ocorra antes do transcurso do prazo máximo de classificação.
§ 4o Transcorrido o prazo de classificação ou consumado o evento que defina o seu termo final, a informação tornar-se-á, automaticamente, de acesso público.
§ 5o Para a classificação da informação em determinado grau de sigilo, deverá ser observado o interesse público da informação e utilizado o critério menos restritivo possível, considerados:
I – a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade e do Estado; e
II – o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento que defina seu termo final.