Tendo em vista que a história oficial do Brasil foi escrita predominantemente por mãos situadas em lugares de privilégios perpetuados por gerações, contar histórias a partir do olhar de “dentro”, de quem mora nos territórios periféricos, certamente é um grande legado que o jornalismo feito pelas e para as comunidades populares ajuda a construir. Na contemporaneidade, o acesso às mídias digitais tem propiciado que ele não só abasteça o seu público-alvo com informações de pertinência popular, como também amplie o seu raio de alcance. Agindo assim, contribui para desconstruir estereótipos que violentam estas realidades sociais, ao mesmo tempo que disputa outras formas de significá-las, evidenciando a complexidade e a potência cultural, econômica e cidadã que existe dentro delas. Interfere desta forma nas bases que sustentam o autoritarismo brasileiro e endossa formas de sociabilidade embasadas no respeito à diversidade cultural, no que toca as questões de classe, gênero e cor.
No contexto de pandemia da Covid-19, este compromisso é ainda mais evidenciado. Na situação de crise, a defesa dos “nossos para os nossos”, revelada na relação de pertencimento entre jornalistas e público que compartilham de um mesmo local de morada, se reflete em uma atuação jornalística ainda mais criativa. Em uma práxis profissional que não apenas denuncia a violação de direitos a que os contextos empobrecidos historicamente são submetidos, mas também elabora e anuncia saídas inventivas visando que as populações locais consigam minimamente proteger suas vidas.
Desta forma, se há falta de água nos territórios periféricos, recurso essencial para a higienização das mãos no combate à Covid-19, além de denunciar a situação, indicar caminhos para a exigência deste direito e cobrar do governo uma solução, este jornalismo propõe como orientação social a velha cultura comunitária da solidariedade entre os vizinhos. Isto é, quem possui este recurso é orientado a compartilhar com quem não tem, para que ninguém fique desassistido. Assim como esta, outras muitas saídas são criadas para cada obstáculo posto, para cada violação de direito instaurada. Dotado de saberes corporificados pela experiência de vida de quem mora nas realidades populares, o olhar sensível destes jornalistas visibiliza e estimula aquilo que quem olha de “fora” a princípio não conseguiria (ou não quer) enxergar.
Ao evidenciarem e fortalecerem a articulação cidadã comunitária e a solidariedade mútua, estes jornalistas também fomentam o que a pesquisadora Mara Rovida (2015) chama de diálogo social solidário. Uma corrente de solidariedade que se espraie socialmente mediada pela dimensão dialógica do jornalismo e que pode fortalecer a organização comunitária. Nesta pandemia, a organização comunitária tem sido acionada com frequência onde o poder público se faz ausente ou só aparece em forma de autoritarismo. Inclusive, a denúncia contra a violência policial não pôde ser posta em segundo plano com a Covid-19, porque jovens negros e pobres não deixaram de ser assassinados no atual contexto. Assim como ocorreu nos Estados Unidos, no caso George Floyd, mobilizações contra o racismo ocorreram durante a pandemia e foram nas comunidades que famílias e vizinhos enlutados clamaram pelo direito à vida dos seus.
Contudo, tão importante quanto produzir informação de pertinência popular, é garantir que estes conteúdos cheguem a quem se destina. Com estas preocupações em mente, diversas iniciativas digitais de jornalismo voltadas à cobertura das comunidades populares têm experimentado novas estratégias de comunicação durante a pandemia. Já em março, quando os primeiros casos da Covid-19 foram confirmados no país, elas participaram de um grande movimento nacional chamado #CoronaNasPeriferias em que cobraram conjuntamente do poder público medidas direcionadas à proteção à vida em contextos empobrecidos. Em carta pública assinada por mais de 80 iniciativas de jornalismo e comunicação de perspectiva popular, foram feitas as seguintes indagações:
“Vamos começar pelo básico: lavar as mãos! Esta tem sido uma recomendação amplamente divulgada. Como é possível que isso seja realmente feito a fim de evitar a contaminação se a quebrada e a favela estão sem água? O governo e várias organizações indicam o isolamento social como o principal meio de prevenção da doença. Isso não é permitido à nossa realidade (…). Ficar em casa, se isolar, não pode ser sinônimo de falta de renda. Se for assim, como garantir que a população periférica consiga comprar sequer um álcool em gel para ajudar na prevenção da contaminação? Se o governo vai ajudar os grandes empresários a não quebrar, vai ajudar ao favelado pagar suas contas também? Vai ajudar a senhora que vende guarda-chuva na esquina a não quebrar?”
O documento foi compartilhado massivamente nas mídias sociais e portais de notícias destas iniciativas e igualmente reforçou a importância do papel desempenhado pelos jornalistas e comunicadores moradores de periferia. “Precisamos saber informar nossas crianças, nossos jovens, nossos idosos, nossos pais, mães e familiares”. Para tanto, além do movimento nacional #CoronaNasPeriferias, estas iniciativas jornalísticas têm se organizado em redes menores, entre si, e com os movimentos populares locais com o intuito de somar forças para agir com mais potência no enfrentamento à pandemia da Covid-19. O movimento #SalveCriadores em São Paulo é uma destas redes. Constituído pelos coletivos de jornalismo Periferia em Movimento, Alma Preta, Nós, Mulheres da periferia e Rádio Cantareira, foi criado com o intuito de ampliar de forma sistematizada o fluxo e o alcance das produções relacionadas à pandemia e seus impactos entre as populações indígenas, negras e periféricas. Para combater a desinformação e o pânico que se instaura com a doença, os jornais Periferia em Movimento, Desenrola e não me enrola e Alma Preta têm produzido para os territórios periféricos de São Paulo o podcast Pandemia sem Neurose. A ideia é denunciar e desmentir os golpes e conteúdos fraudulentos que circulam pela internet, bem como ofertar orientações de prevenção e autocuidado na quarentena.
No âmbito da articulação junto a organizações e movimentos populares, o jornal Favela em Pauta em parceria com o Instituto Marielle Franco desenvolveu o Mapa Corona nas Periferias. O objetivo do projeto é conferir visibilidade a ações solidárias que estão sendo realizadas nas comunidades brasileiras, não só para que elas tenham oportunidade de se conhecerem e se fortalecerem em rede, como também para que os moradores das comunidades possam saber das ações que estão ocorrendo nas proximidades de onde moram.
O jornal Voz das Comunidades, no Rio de Janeiro, por sua vez se articulou aos coletivos Papo Reto e Mulheres em Ação no Alemão, e construiu o Gabinete de Crise do Complexo do Alemão. O intuito deste movimento é arrecadar e distribuir doações de alimentos e produtos de higiene, pressionar o poder público para a criação de políticas públicas direcionadas às favelas, combater os conteúdos fraudulentos que circulam massivamente por meio de aplicativos de mensagens e gerar informação de pertinência popular. O Voz também sistematiza informações sobre o número de pessoas infectadas e mortas pela Covid-19 em favelas cariocas no Painel de Atualização de Coronavírus nas Favelas do Rio de Janeiro. O intuito é mensurar especificamente o modo como o contágio se alastra nestas localidades, uma vez que as comunidades não são compreendidas como bairros pela mensuração de casos feita pelo governo. Para tanto, o jornal cruza dados ofertados pelos governos municipal e estadual do Rio de Janeiro, bem como de clínicas de família e unidades de saúde das comunidades cariocas.
Para que as informações de pertinência popular sejam acessadas pelo público, outra estratégia elaborada pelas iniciativas jornalísticas tem sido usar as redes sociais e aplicativos de mensagens para distribuir seus conteúdos. A estratégia de comunicação parece eficiente sobretudo quando se leva em consideração que, dentre as moradias que possuem conexão à internet, em 99% o celular é o principal equipamento de acesso a este serviço, e que, dentre os brasileiros conectados à rede em idade superior a dez anos, 95% utilizam o serviço preferencialmente para enviar ou receber mensagens de texto, voz ou imagem (IBGE, 2018).
Considerando essas questões que envolvem a desigualdade de acesso à internet, o Voz das Comunidades criou durante a pandemia um aplicativo homônimo para que suas produções jornalísticas sejam acessadas via celular. A Agência Mural de Jornalismo das Periferias também lançou em março de 2020 o Em Quarentena, podcast diário difundido principalmente pelo aplicativo de mensagens WhatsApp, um dos principais canais por onde a troca de mensagens e a desinformação é compartilhada no Brasil. Além de combater golpes e conteúdos fraudulentos que circulam nas comunidades, o podcast é destinado a cobrir pautas que abarcam desde as ações de enfrentamento à pandemia, organizadas por movimentos comunitários, até as dificuldades de estudo remoto que jovens moradores de periferias paulistas enfrentam. Estas iniciativas têm investido igualmente em artes didáticas e informativas sobre o assunto nas redes sociais como forma de tornar o conteúdo mais atrativo e claro para o leitor. O investimento em entrevistas jornalísticas em formato de lives nas redes sociais abordando questões relacionadas à saúde e acesso a outros direitos sociais também têm sido recurso utilizado no atual cenário. Curadorias de eventos culturais comunitários realizados via internet estão sendo realizadas para divulgar os talentos locais e estimular os jovens a praticarem o distanciamento social. Estas são formas encontradas por essas iniciativas para atrair e informar o leitor com conteúdo de qualidade e pertinente ao seu universo cultural em um contexto em que acesso informação é fundamental para que vidas nas comunidades sejam literalmente salvas.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Juliana Freire Bezerra é doutoranda do PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS.