Segunda-feira do Carnaval que não existiu, 15 de fevereiro de 2021, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) publicou no YouTube um vídeo em que ataca ministros do Supremo Tribunal Federal, defende o fechamento do STF e faz apologia ao AI-5, um dos instrumentos de repressão da Ditadura Militar.
Terça do Carnaval que não existiu, menos de 24h depois da publicação do vídeo, o ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news em que o deputado é investigado, determinou a prisão em flagrante do parlamentar e a retirada do vídeo do YouTube. Entre a chegada da Polícia Federal e sua ida para a delegacia, Silveira gravou um vídeo ameaçando novamente os membros do STF.
Quarta-feira de cinzas, a prisão foi ratificada em uma incomum unanimidade do plenário do Supremo, em uma transmissão ao vivo. Pressionada, a Câmara dos Deputados parece não ter tido outra alternativa que não ratificar a prisão, em uma sessão que contou com a participação online de Daniel Silveira.
O episódio gerou vários questionamentos. Estaríamos diante da simples manifestação da liberdade de expressão do deputado? A imunidade parlamentar o resguarda nesse caso? O ministro Alexandre de Moraes deveria ter amparado sua decisão em uma lei da Ditadura? Quais os riscos reais à democracia? Conteúdos disponíveis na internet podem caracterizar flagrante? Isso não abre precedentes perigosos? O novo projeto de lei que tramita a toque de caixa pela Câmara blinda os deputados de prisões e flagrante acentua a impunidade?
O ponto que defendemos aqui é que qualquer perspectiva relacionada a este episódio precisa levar em conta as mudanças da ecologia midiática que favorecem o ataque à democracia. Para tanto, devemos observar os recursos comunicacionais empregados pelo deputado: meios de comunicação, plataformas e dispositivos, bem como argumentos, termos e símbolos.
Tudo começou no YouTube. O vídeo foi postado no canal do deputado que possui atualmente 73 mil inscritos. Não foi na TV aberta, não foi no jornalismo impresso. Não nos causa surpresa que este tipo de discurso encontre lugar mais facilmente em ambientes digitais. Cada plataforma possui modos de funcionamento e gramáticas próprias, mas muitas delas se transformaram em espaços mais recorrentes de desrespeito e intolerância. É o caso do YouTube, cujo formato da oralidade e informalidade acentuam a produção de discursos inflamados e extremistas. No vídeo, Daniel endereçou à Fachin: “Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência física? Não, eu só imaginei” [..] “Então, qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência, após cada refeição, não é crime”.
Deputado eleito com pouco mais de 32 mil votos, Daniel sabe que é estratégico apostar em discursos extremos para ter alguma chance de ganhar um novo mandato nas eleições de 2022. Ele não precisa do amor de todo o Brasil. Basta ter a atenção e a preferência de um pequeno percentual dos votos dos fluminenses. Tendo sido preso inúmeras vezes quando era policial militar no Rio de Janeiro, ele foi claro ao dizer, no segundo vídeo, que não teme a prisão: “Pelo meu país eu estou disposto a matar, morrer, ser preso, tanto faz”. O comportamento de Daniel parece valer a pena para atores minoritários no tabuleiro político.
Cabe lembrar que o deputado ficou famoso com a quebra da placa de Mariele. O ato de barbárie fez dele uma personagem nacional e não seria de todo exagero dizer que o elegeu. Ele sabe o quanto é importante atender os apetites não explícitos do bolsonarismo. Mesmo preso, desrespeita uma policial que o orientou a usar máscara. A linguagem violenta que utiliza para atacar os magistrados é atravessada pela violência de gênero. Chega a fazer insinuações sobre a genitália e a orientação sexual de ministros. Vagabundo é a mais suave dentre as ofensas.
As características do YouTube somadas à estratégia do deputado e ao apoio incondicional de seus apoiadores compõe um fragmento dessa nova ecologia midiática. Todos podem ser produtores, veiculadores e consumidores de conteúdo. Ao mesmo tempo, parece haver uma autorização tácita de que tudo pode nas redes, denominada equivocadamente de liberdade de expressão. O vídeo ainda encontra eco na sociedade pois reverbera valores autoritários, conservadores, racistas, machistas e homofóbicos. A nova ecologia midiática pode sim favorecer o autoritarismo de maneira muito eficiente.
O comportamento violento do deputado poderia ser individualizado. Entretanto, a violência política está longe de ser um caso isolado e vem sendo cada vez mais acionada, especialmente pela extrema direita nas diversas redes que compõem essa ecologia midiática. Não se trata de dizer que a violência política é um fenômeno inédito, mas a reordenação do campo comunicacional sem dúvida é um terreno fértil para as ofensas e ataques à democracia.
O próprio STF se vê desafiado a lidar com provas extraídas da internet a partir de leis criadas em outro contexto, como é o caso do flagrante. Por outro lado, dá mostras de que está atento à centralidade da mídia. Mandou bloquear as contas do deputado nas redes sociais, além de solicitar a retirada do vídeo do canal no YouTube. Mesmo após a prisão de Daniel, as contas continuavam a apresentar ofensas, possivelmente atualizadas pela equipe de assessoria ou pelo próprio deputado, em cuja sala de detenção foram encontrados dois celulares. O ponto é: A nova ecologia midiática não é composta apenas de plataformas, mas de predisposições a violências políticas e ao autoritarismo que vão sendo cada vez mais naturalizadas à medida em que nos familiarizamos com a nova ecologia midiática.
Não estamos argumentando sobre os efeitos das tecnologias digitais, o que de certo modo já estudamos desde a década de 2010. Também não é um argumento apenas contra o discurso antidemocrático, que tem longa tradição de reflexão. Chamamos a atenção aqui para a associação entre estratégias argumentativas da nova direita, plataformas digitais e a vida democrática. Há uma tentativa de normalização da incitação ao autoritarismo via redes sociais. Prova disso é que o deputado se mostra arrependido e vai à Câmara se defender: “Olha, exagerei, desculpas, é só ideia. Isso é normal na democracia, contanto que tenha-se o respeito.” Se incitar a derrubada de um dos três poderes pode ser uma ação normalizada na democracia, deixamos de saber o que realmente significa uma democracia.
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Samuel Barros é professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas (PósCom-UFBA). Desenvolveu atividades de pós-doutorado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). É vice-coordenador do GT “Comunicação e Democracia” da Compolítica.
Regiane Lucas Garcêz é professora adjunta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora, mestre e jornalista pela mesma universidade. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. Participa como pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública (EME). É coordenadora do GT “Comunicação e Democracia” da Compolítica.