Debates recentes em torno de duas expressões polêmicas revelam como a liberdade de expressão tem sido capturada ora pela política, ora pelo direito. Os resultados dessas capturas são, de um lado, avaliações muito apaixonadas e marcadas pelas interpretações das forças dominantes, e que podem levar à censura de expressões legítimas, e de outro, análises excessivamente técnicas, que acabam por reduzir a complexidade do problema e muitas vezes autorizar expressões abusivas. Ao refletir sobre os debates em torno dessas expressões polêmicas, quero aqui defender que precisamos levar em conta duas outras dimensões fundamentais da liberdade de expressão: a moralidade e a comunicação, e como explicarei, não qualquer concepção de moralidade e de comunicação. Mas antes, vamos às polêmicas.
Em entrevista publicada no dia 25 de julho pela Folha de S. Paulo, a professora de Direito da FGV Clarissa Gross, especialista em liberdade de expressão e discurso de ódio, analisou a expressão “vamos fuzilar a petralhada”, dita por Jair Bolsonaro na campanha presidencial de 2018, e chegou a duas conclusões. A primeira é de que seria uma fala tosca, grosseira, ignorante e irresponsável, mas não discurso de ódio, pois não se enquadraria nos três quesitos que definem esses discursos: não seria uma fala direcionada a um grupo tido como vulnerável, e apesar de circulada publicamente, não estaria, naquele contexto, indicando que esse grupo deveria ter menos direitos de dignidade do que outros. A segunda conclusão é que essa fala não constituiria incitação ao crime, pois, em suas palavras
“…não me parece que, naquele contexto, o discurso significava incitação ao crime justamente porque o sentido não era o de defender a prática de crimes contra militantes do PT. Isso não significa que, em um outro cenário social e político, em outro contexto, uma frase como essa não poderia significar incitação ao crime.”
A professora também explicou que, apesar de a legislação brasileira não ter uma limitação explícita da liberdade de expressão por causa de “discurso de ódio”, numa interpretação mais geral, essa limitação estaria presente em normas e decisões jurídicas sobre a honra coletiva, e no artigo 20 da Lei Antirracismo (Lei 7.716/89). Outra questão interessante levantada por Gross é que não há consenso científico de que proibir certos discursos diminua a adesão a eles, e tampouco que discursos violentos sejam as causas determinantes de atitudes violentas.
A avaliação de Clarissa Gross foi contestada dois dias depois em artigo na seção Tendências e Debates da Folha de S. Paulo pelos juristas Pierpaolo Bottini e Ilana Luz. Segundo o também professor de direito penal da USP e a doutora em direito penal pela USP, a fala de Jair Bolsonaro “vamos fuzilar a petralhada” não estaria abrigada pela liberdade de expressão, uma vez que se enquadra no tipo penal “incitar, publicamente, a prática de crime” (art. 286 do Código Penal). Isso porque não se trata de uma fala ocasional, e sim, uma estratégia sistemática de Bolsonaro de incitação à violência contra opositores políticos, o que não seria admitido pelo Estado de direito. Mais ainda, Bottini e Luz afirmam que, ao caracterizar a fala como tosca e grosseira e condenável, porém abrigada pela liberdade, Gross não estaria percebendo sua gravidade, uma vez que “Admitir como liberdade de expressão a recomendação do extermínio do outro é deixar de demarcar as fronteiras do admissível.” Para tanto, relembraram o genocídio de 1994 em Ruanda, incitado via uma estação de rádio. Para os autores, qualquer fala seria legítima, desde que “despida de violência”. Por isso retomaram o ensinamento de Karl Popper de que é preciso ser intolerante com quem “propala o fim das liberdades por meio da violência”.
A outra expressão polêmica é “fogo nos racistas”, presente na canção “Olho de Tigre” do rapper Djonga. Lançada em 2017, a expressão se tornou bordão das lutas antirracistas, reproduzida em memes, camisetas e em diferentes postagens em redes sociais. Embora não tenha sido censurada na canção (talvez porque o vídeo tenha mais de 23 milhões de visualizações), sua utilização pelo rapper para venda de camisetas foi censurada pelo Instagram, por motivos de “risco genuíno ou dano físico ou ameaça”, incluindo “linguagem que leva à violência grave; ameaças que podem levar à morte, à violência ou à ferimentos graves; instruções sobre como fazer armas, se o motivo for ferir gravemente ou matar pessoas”.
A frase também foi censurada pela justiça num caso específico. Nove meses após sua irmã ter sido ofendida com termos racistas e agredida por lojistas que se recusaram a trocar um produto vendido por trinta reais a mais do que ele valia, uma mulher fez postagens numa rede social denunciando a violência e protestando contra o arquivamento de inquérito por agressão e injúria racial motivado pelo caso. Ao mesmo tempo, uma ação civil por danos morais proposta pela lojista, após ser julgada improcedente em primeira instância, foi revertida na 3a Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, levando à condenação da mulher que fez a postagem a pagar cinco mil reais de indenização, além de obrigar o Facebook a remover a postagem e proibir a mesma mulher de publicar mensagens injuriosas contra os lojistas.
Recuperando informações da decisão de segunda instância, descobri que a autora da postagem não chega a usar em seu texto a expressão “fogo nos racistas”. Primeiramente ela relata o caso, pede justiça e diz “não ao racismo”, publicando foto da fachada da loja. Quatro dias depois ela publica uma nova mensagem com os dizeres “que a justiça seja feita”, junto a uma imagem de alguém segurando um cartaz com a frase “fogo nos racistas”. O desembargador então acatou o pedido da lojista, entendendo que a postagem teria motivado uma manifestação pública em frente à loja, com depredações e pichações com a mesma expressão, e que manifestantes teriam ateado fogo na porta da loja. A mulher que fez a postagem questionou a decisão com embargos de declaração, que foram rejeitados, e em seguida entrou com recurso especial ao STJ, do qual aguarda julgamento.
Sobre o uso da expressão “fogo nos racistas”, o escritor Jeferson Tenório, vencedor do prêmio Jabuti de 2021 com a obra “O Avesso da Pele” (Cia. das Letras), debateu a questão em sua em coluna no UOL e argumentou que se trata de uma expressão de unidade da luta antirracista, que deve ser entendida como uma metáfora que fortalece o combate às violências racistas, e não um incentivo explícito à violência direta contra pessoas que praticam atos racistas. Além disso, diz que a ideologia da branquitude compreende a expressão no sentido literal porque as lutas antirracistas ameaçam sua hegemonia. Ao final, Tenório atualiza as reflexões de Frantz Fanon em “Os Condenados da Terra” (1961) para dizer “como não utilizar a frase ‘fogo nos racistas’ quando estamos sob ataque permanente do racismo?”
Descritas as polêmicas, não vou me aventurar a dar um parecer definitivo sobre elas, mas refletir sobre como os casos foram analisados por juristas e especialistas a partir de critérios que derivam da teoria moral e da comunicação. Penso aqui em perspectivas pragmáticas da teoria moral e da comunicação que identificamos nas obras de autores como Anshuman Mondal e Jürgen Habermas, isto é, que levem em conta os contextos e usos históricos e sociais das normas morais e da comunicação sobre questões de justiça.
Em Islam and Controversy: the Politics of free speech after Rushdie (Palgrave, 2014), Mondal nos ensina que para avaliar a legitimidade de uma expressão é necessário analisar as intenções do falante, a recepção pelo ouvinte e o contexto em que a fala é proferida, o que significa considerar as expectativas públicas sobre expressões legítimas e as relações de poder entre as partes envolvidas. Em termos de moralidade, é preciso também avaliar se há uma ética de pertinência (do inglês propriety) nas intenções do falante, e se há uma ética da escuta do receptor, o que inclui saber distinguir metáforas e outras figuras de linguagem de ofensas diretas, por exemplo.
Com Habermas aprendemos que uma moralidade comunicativa se dá na prática quando os falantes revelam com suas falas que consideram seus interlocutores como moralmente competentes, isto é, que cada pessoa tenha sua dignidade e a capacidade de fazer julgamentos sobre a moral pública e sobre sua moral pessoal. Como bom estudante de Wittgenstein, Habermas também valoriza o contexto e os jogos de linguagem em cada sociedade ou situação, o que inclui saber as regras do jogo, quem está jogando, e quais termos têm carga mais ou menos pejorativa.
Podemos adicionar a esses pontos o alcance da comunicação, o que implica que a gravidade de uma expressão – e consequentemente a responsabilidade do falante -, aumenta com sua amplitude e grau de circulação.
Pois bem, quando tratamos das intenções dos falantes, e se há uma ética da pertinência nas expressões, percebemos que no caso da frase dita por Bolsonaro não há por parte de Clarissa Gross uma avaliação da intencionalidade, e sim uma breve análise do sentido da frase a partir de uma avaliação de seu contexto. Mas apesar de sempre falar da importância do contexto nesta avaliação, a professora não chega a esmiuçá-lo, o que torna sua avaliação bastante subjetiva. Se perguntado sobre suas intenções com a expressão, Bolsonaro talvez dissesse que “não era bem isso que queria dizer”, ou que foi uma “brincadeira”. Mas quando se desloca para uma questão de “brincadeira”, ou uma “fala tosca e grosseira” algo que pode ser visto como uma injustiça, inclusive capaz de motivar pessoas a usar de violência semelhante, como ocorreu com o assassinato do tesoureiro do PT Marcelo Arruda, corremos o risco de colocar no mesmo patamar as falas públicas de um candidato à presidência da república às piadas ditas no espaço privado pelo “tiozão do churrasco”.
Quando falamos da recepção dos ouvintes, percebemos que, para quem sofre direta ou indiretamente as consequências violentas de determinadas expressões, fica muito difícil distinguir metáforas de ofensas diretas. Por isso temos que apelar por uma ética da pertinência dos falantes, sobretudo de quem está em posições de poder ou cuja fala tem grande alcance. E esse apelo vem justamente da expectativa pública de que, em tese, expressões que trazem verbos imperativos denotando ações violentas dificilmente sejam abrigados pela liberdade de expressão. Ademais, quando falamos em atribuir capacidades morais aos interlocutores, fica difícil dizer que alguém que pedimos para matar tenha sua dignidade ou capacidade de julgamento reconhecida por nós.
Com isso chegamos ao último e mais difícil ponto: o contexto e as relações de poder e de comunicação. Para refletirmos sobre ele, escrevi em forma de perguntas: que contexto é esse de um país em que a espada e as armas sempre atravessaram o caminho das leis e do diálogo fraterno? Que contexto é esse em que o racismo se reproduz direta e indiretamente em todas as instituições e em todas as dimensões das vidas das populações negras, originárias e tradicionais? Que contexto é esse em que o machismo e a “LGBTQIA+fobia” resistem contra os direitos à igualdade e à personalidade? Que contexto é esse em que o preconceito, o ódio, a ofensa e o linchamento virtual (ou físico) são o que gera mais alcance midiático, e portanto, mais alcance econômico e eleitoral? Que contexto é esse, em que a censura e a violência contra o livre debate de ideias ganha contornos cada vez mais graves? Que contexto é esse em que não conseguimos mais destacar a política da violência?
São essas algumas das contribuições que a moralidade e a comunicação nos oferecem quando vamos avaliar a legitimidade de nossas expressões.
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Vitor Blotta é professor da ECA-USP e coordenador do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA/IEA-USP)