A cobertura jornalística e as investigações sobre política, corrupção e crime organizado realizadas em pequenas e médias cidades do Brasil, Colômbia, Honduras e México foram a raiz de 139 assassinatos de profissionais da imprensa ocorridos entre 2011 e 2020 registrados pela organização Repórteres sem Fronteiras (RSF). De acordo com a RSF, metade dessas pessoas relatou ameaças.
As informações foram coletadas no âmbito do desenvolvimento do projeto “Baixo Risco – Análise dos programas de proteção a jornalistas na América Latina” realizado pela RSF com o apoio da Unesco por meio do Fundo Mundial de Defesa da Mídia e que conta com uma duração de 12 meses.
Embora no início do projeto não estivesse prevista a realização de publicações temáticas antes do relatório final, os dados encontrados até agora são importantes o suficiente para não esperar alguns meses, explica Bia Barbosa, coordenadora do projeto, à LatAm Journalism Review (LJR).
“Quando iniciamos o projeto não havia nem previsão de fazer publicações durante o processo de produção da pesquisa, mas […] quando começamos a estudar um pouco o contexto e a situação de risco — o perfil do jornalista, aquele comunicador mais vulneráveis à violência mais grave que é o assassinato — achamos interessante publicar”, disse Barbosa.
Esse perfil, por exemplo, mostra que as vítimas são em sua maioria homens (93% dos casos) e residiam em cidades relativamente pequenas.
“Esses números não coincidem necessariamente com o clichê popular do jornalista investigativo que trabalha para um grande jornal de uma capital e que é assassinado por revelar informações de relevância nacional”, diz a publicação RSF. “Pelo contrário: em sua maioria, jornalistas assassinados deliberadamente no Brasil, México, Colômbia e Honduras entre 2011 e 2020 viviam longe de grandes centros urbanos, muitas vezes trabalhavam em situações precárias, para diversos meios de comunicação e cobriam questões que afetavam de perto com autoridades locais e populações”.
O estudo indica ainda que em 92% dos casos os jornalistas eram o “alvo”, ou seja, estavam na mira de seus agressores. Apenas 10 dos 139 casos ocorreram durante coberturas de risco. Nestes casos, o jornalista foi baleado sem necessariamente ser o alvo dos tiros.
Precisamente por terem objetivos claros, a maior parte dos crimes — 58% deles — partilha a forma como foram executados: os jornalistas foram perseguidos pelos seus agressores e o crime foi cometido por assassinos profissionais, diz a publicação. Nestes casos, jornalistas foram agredidos perto de seus escritórios, em casa ou no trajeto entre seus locais de trabalho e suas residências.
Um em cada quatro jornalistas, especialmente no caso do México, foi sequestrado antes de ser morto. A maioria dos cadáveres foi encontrada com sinais de tortura e, em alguns casos, até mutilados.
Uma das constatações mais relevantes e que está diretamente relacionada com o objetivo do projeto é que pelo menos 45% das vítimas “relataram ter recebido ameaças e o fizeram publicamente, seja nos meios de comunicação para os quais trabalharam, seja a partir de seus contas nas redes sociais ou mesmo diretamente das forças de segurança das cidades onde residiam”, informa a publicação RSF.
No entanto, apenas 10 deles receberam algum tipo de proteção do Estado, ou seja, 7,2% do total e 16% dos que foram ameaçados.
“Há [casos de] jornalistas que estavam sob proteção de mecanismos […]. Aconteceu no México, aconteceu na Colômbia, eles estavam sob proteção e acabaram assassinados. Portanto, é certo que há problemas, há coisas a enfrentar. A ideia é analisar essas deficiências mais estruturais”, disse Barbosa, que frisou que por enquanto é clara a necessidade de fortalecer os mecanismos.
Mecanismo de proteção da região sob lupa
Analisar com precisão a situação dos mecanismos de proteção a jornalistas no Brasil, Colômbia, Honduras e México com o objetivo de oferecer recomendações práticas para o seu fortalecimento é o objetivo principal do projeto “Baixo Risco – Análise dos programas de proteção a jornalistas na América Latina América”, explicou Barbosa à LJR.
Para o relatório final, serão analisados os marcos regulatórios — leis e decretos dos quatro países — relatórios de organismos internacionais, da sociedade civil e até os mesmos mecanismos. Segundo Barbosa, as entrevistas também serão realizadas com os três grupos principais: beneficiários dos programas; gestores e funcionários públicos, bem como a equipe que faz parte do mecanismo; e organizações da sociedade civil que monitoram programas de proteção ou fazem parte deles, no caso de países que permitem essa participação.
“No final, vamos produzir este relatório e também realizar uma série de ações e atividades de advocacia política para apresentar os resultados a governos, poderes públicos em geral e organismos internacionais para que possamos alcançar que algumas dessas medidas e as recomendações são implementadas”, disse Barbosa.
Para o coordenador do projeto, trabalhar com o enfoque de políticas públicas é o que permitirá um melhor entendimento das deficiências dos mecanismos, bem como das diferentes particularidades de cada um. Por exemplo, o Brasil tem um desde 2005, mas apenas até 2018 os jornalistas foram incluídos. No entanto, também entende que o “contexto latino-americano” os une e, portanto, permite que essas comparações sejam feitas.
“A ideia é contribuir […] não só para que os mecanismos sejam fortalecidos, mas para que outros países que vierem [depois] desenvolver mecanismos de proteção possam aprender com os acertos e erros dos mecanismos que já estão em funcionamento”, explicou Barbosa.
Transformar o que foi encontrado no projeto em ações concretas é apenas um dos maiores desafios. A equipe sabe que há anos os mecanismos estão sob escrutínio não apenas por organizações locais, mas também internacionais.
No caso do mecanismo mexicano, o segundo a ser implementado na região, devido aos níveis de violência contra jornalistas vividos pelo país, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos no México apresentou um extenso relatório com 104 recomendações para fortalecer o mecanismo em 2019.
“Provavelmente não vamos encontrar nada de inédito na questão dos problemas do mecanismo mexicano que o Comissário das Nações Unidas não encontrou em 2019. Mas, o que aconteceu nos últimos dois anos desde essa análise superdetalhada? Por que não se conseguiu implementar as recomendações que foram feitas há dois anos? Então vamos investigar, até as recomendações, e trabalhar com medidas mais práticas que possam realmente ser implementadas”, disse Barbosa.
Na Colômbia, o primeiro mecanismo da região também está sujeito a críticas. A falta de uma resposta rápida às ameaças de jornalistas, bem como a falta de compromisso do governo, de acordo com algumas organizações locais, afetaram sua eficiência. Em 2017, a Fundação para a Liberdade de Imprensa (FLIP) da Colômbia, que promoveu a criação do mecanismo em 1999 e fez parte do Comitê de Recomendações de Riscos e Medidas do Mecanismo por 16 anos, decidiu retirar-se, como disse, por conta disso contribuições foram dispensadas ao proteger jornalistas.
Algo semelhante aconteceu em Honduras. O Colégio Nacional de Jornalistas informou que está se retirando do mecanismo devido ao grande número de assassinatos e agressões e à impunidade que envolve esses crimes.
Para conseguir mudanças mais efetivas, desde o início do projeto ela foi apresentada aos representantes dos mecanismos e assim garantir sua participação ativa e comprometimento.
“Porque a ideia não é só fazer a crítica – nós vamos fazer todas as críticas que tivermos que fazer – mas a ideia é fazer mudanças no final. E para isso precisamos do comprometimento e da boa vontade dos mecanismos, desde os funcionários até a coordenação do programa de proteção”, disse Barbosa. “Então apresentamos o projeto aos mecanismos e todos eles nos agradeceram a iniciativa e firmaram o termo de compromisso de ‘vamos lá, vamos trabalhar juntos’”.
Guilherme Canela, chefe da seção de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco, disse à LJR que a entidade trabalha há anos para promover diversos mecanismos para que os Estados cumpram suas obrigações de prevenir, proteger e buscar justiça em ataques contra jornalistas. O objetivo, segundo Canela, é promover um ambiente mais favorável e seguro para o exercício do jornalismo, o que vem sendo promovido junto ao Fundo Mundial de Defesa da Mídia.
“No entanto, não há dúvida de que ainda há um grande espaço para reforçar o funcionamento desses mecanismos de proteção e o compromisso dos atores governamentais, judiciais e da sociedade civil com sua implementação”, disse Canela. “As informações coletadas pelo estudo RSF são um insumo relevante para determinar onde esses mecanismos podem estar falhando, para identificar quais são as lições aprendidas e os principais desafios ou limitações que impediram sua implementação completa ou bem-sucedida. Portanto, ter esta informação é de grande importância para propor ajustes, soluções e recomendações específicas para o contexto específico de cada mecanismo, e assim aumentar a segurança dos jornalistas”.
Embora as mulheres jornalistas sejam comparativamente menos assassinadas, o projeto busca analisar de forma particular a situação de segurança deste grupo específico e as medidas de proteção concedidas.
“Em termos de números de homicídios, por exemplo, as mulheres não são as principais vítimas. Mas quando olhamos para as ameaças e mesmo no ambiente digital, que é um contexto mais presente em termos de ameaças para jornalistas e comunicadores do que, por exemplo, para os defensores dos direitos humanos em geral, as mulheres são as principais vítimas”, afirmou. Barbosa.
O relatório final terá um capítulo especial para analisar quais são as necessidades específicas e porque é necessário garantir uma perspectiva de gênero nas políticas públicas. Uma perspectiva importante não só na avaliação de casos e sua análise de risco, mas também em que tipo de medidas de proteção devem ser oferecidas às mulheres jornalistas. Por exemplo, a questão do deslocamento forçado, que tende a ser mais difícil para jornalistas com filhos pequenos, explicou Barbosa.
No momento, grande parte do projeto está sendo realizado virtualmente e com a ajuda de correspondentes da RSF em cada país. As primeiras entrevistas já começaram e um primeiro questionário foi enviado aos mecanismos de proteção. O projeto que teve início em fevereiro de 2021 vai terminar nos primeiros meses de 2022. Barbosa não descarta publicações temáticas ao longo deste ano, como a feita recentemente sobre o perfil das vítimas, caso sejam encontrados dados relevantes.
Texto publicado originalmente por LatAm Journalism Review.
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Silvia Higuera é jornalista.