Um ano após o ataque terrorista ao Charlie Hebdo em que 12 pessoas foram assassinadas – a maioria delas, jornalistas – o semanário satírico ainda é uma fonte de confusão e controvérsia em relação aos direitos de livre expressão.
No ano de 2015, ações terroristas por extremistas islâmicos – mais recentemente, no Líbano, no Egito, no Mali e, numa sequência dramática, os ataques em Paris, em novembro – forneceram ampla evidência de que o atentado ao Charlie Hebdo não foi um incidente isolado de barbárie política.
O ataque fez parte de uma luta política e ideológica mais ampla que tinha como alvo os valores universais da democracia e dos direitos humanos. Ele deu um novo impulso ao debate sobre os limites da liberdade de expressão que surgiu, pela primeira vez, dez anos atrás, quando extremistas islâmicos orquestraram violentas manifestações pelo mundo afora após a publicação de imagens do profeta Maomé pelo jornal dinamarquês Jyllands Posten.
A violência e os interesses políticos
Quando a crise dos desenhos de Maomé foi deflagrada, em janeiro de 2006 (na Dinamarca, eles foram publicados pela primeira vez em setembro de 2005), os meios de comunicação ocidentais dividiram-se em relação à posição a tomar, em termos de reação. Alguns jornais republicaram os desenhos, em solidariedade aos jornalistas dinamarqueses. Muitos decidiram não republicar porque os editores entenderam que seria indelicado para com os leitores muçulmanos, mas alguns cederam à autocensura em meio a amplas ameaças de violência.
A crise do Charlie Hebdo levou a mais sentimentos de culpa em relação a publicar ou não publicar a controvertida primeira página da primeira edição após o ataque. Também então, parte da mídia decidiu publicar (uma pequena minoria) enquanto a maioria se posicionou contra.
As suscetibilidades religiosas em relação ao Charlie Hebdo continuam fortes, e não apenas no mundo muçulmano. Esta semana, o jornal do Vaticano criticava o desenho da primeira página do semanário por ocasião do aniversário – um Deus empunhando uma arma, como um terrorista, com a legenda: “Um ano depois, o assassino ainda está solto”. Mas o jornal L’Osservatore Romano, do Vaticano, foi mais longe. Acusando a revista de um “laicismo intransigente”, disse: “Uma vez mais, o semanário está esquecendo que os líderes religiosos de todas as crenças vêm repetindo constantemente que a violência deve ser rejeitada em nome da religião…”
Isso é verdade, mas os jornalistas irão destacar o número cada vez maior de crentes e de não-crentes que foram vítimas de inúmeras ações terroristas realizadas por extremistas religiosos, o que sugere que muitas pessoas à margem da religião estabelecida pelo mundo afora está disposta a usar violência quando isso convém a seus interesses políticos.
Ações de ódio e incentivo à islamofobia
Muitos líderes religiosos têm pavio curto quando se trata de liberdade de imprensa e de expressão. Uma semana após o ataque de 2015 ao Charlie Hebdo, por exemplo, o papa Francisco condenou os assassinatos em nome de Deus, mas preveniu que a religião não podia ser insultada. “Matar em nome de Deus é um absurdo”, disse aos repórteres. Embora defendesse a liberdade de expressão, também preveniu que “cada religião tem sua dignidade” e que “há limites”. “Se um amigo fala mal de minha mãe, ele pode esperar receber um soco, e isso é normal. Você não pode provocar nem pode insultar a fé das outras pessoas, você não pode ridicularizá-la.” Para algumas pessoas, isso soou como uma aprovação apenas velada do uso da violência para contra-atacar a blasfêmia.
A maioria dos jornalistas respeita a liberdade religiosa, mas eles não deveriam ser intimidados por líderes religiosos no sentido de criar zonas proibidas a comentários e opiniões que neguem o direito de ouvir vozes dissidentes e críticas vigorosas.
O Charlie Hebdo recusava-se a ser perseguido. Sempre foi uma voz de oposição intransigente a qualquer tipo de censura e pagou um alto preço por isso. Em 2011, seus escritórios foram incendiados por uma bomba depois que anunciou que pretendia fazer uma edição especial com o profeta Maomé como editor convidado. E há um ano sofreu um ataque indefensável e intolerável à sua redação.
O aniversário lembra-nos como os jornalistas precisam equilibrar cuidadosamente os direitos de liberdade de expressão com a obrigação de mostrar bondade e sensibilidade para com os direitos dos outros e particularmente precaver-se do discurso do ódio – em especial por parte da ala populista da política inescrupulosa. Nós já ouvimos essas vozes no debate acalorado sobre a crise de imigrantes e refugiados na Europa, assim como nos Estados Unidos, onde Donald Trump fez da islamofobia um ponto central em sua pretensão de ser o candidato a presidente pelo Partido Republicano.
Os meios de comunicação devem se precaver contra os que querem usá-los para inspirar ações de ódio ou para incentivar a islamofobia. Devem fazer o possível para baixar a temperatura política e evitar dar cobertura a tratamentos abusivos ou ações de discriminação contra comunidades muçulmanas.
Uma nova era de comunicações públicas
Vivemos uma época de um jornalismo refletido, quando todos os profissionais da mídia e mesmo aqueles pretensos jornalistas de fora das redações precisam pensar cuidadosamente sobre as consequências daquilo que escrevem e das imagens que mostram.
Os colegas que morreram na redação do Charlie Hebdo não eram defensores da violência ou do ódio. Na verdade, o semanário sempre utilizou sua energia criativa para mostrar que as posições políticas podem e devem ser debatidas numa plataforma em que o respeito pelo pluralismo signifique que todas as opiniões – mesmo aquelas com que discordamos intensamente – têm o direito de ser ouvidas e ninguém – acima de tudo os que negociam assassinato e barbárie – tem o direito de dizer o contrário.
Mas nunca devemos esquecer que cada país tem seus próprios limites para a liberdade de expressão. Como destacou o jornalista e escritor Gary Younge escrevendo no jornal The Guardian um ano atrás, no contexto do Charlie Hebdo a questão da liberdade de expressão é complexa. A França, com todas as suas tradições de liberdade, foi o país em que, em 2005, o jornal Le Monde foi considerado culpado de “difamação racista” contra Israel e o povo judeu. Em 2008, um cartunista do Charlie Hebdo foi demitido depois que se recusou a pedir desculpas por fazer observações antissemitas numa coluna. E dois anos antes do jornal Jyllands Posten publicar, em 2005, as caricaturas de Maomé, ele recusou uns desenhos que sugeriam uma abordagem pouco séria da ressurreição de Cristo por medo que “provocassem uma indignação”.
Longe de ser “sagrada”, a liberdade de expressão é sempre imprevisível, argumenta Gary Younge. Todas as sociedades estabelecem limites. Estes, muitas vezes são imprecisos e mudam constantemente. Existe um debate contínuo sobre o que constitui padrões aceitáveis do discurso público quando se trata de suscetibilidades culturais, raciais e religiosas. É por isso que a Ethical Journalism Network vai lançar, em 2017, uma nova campanha para promover a liberdade de expressão através de comunicações éticas e baseadas em valores.
O jornalismo tem seus próprios princípios fundamentais, que abrangem exatidão, lealdade, humanidade, independência e transparência e estes podem fornecer uma base para uma nova era de comunicações públicas respeitosas.