Nasceu gótica, germânica, robusta, rebuscada: setecentos anos depois, a imprensa se expressa através de sinais florentinos e venezianos — inclinados, ágeis, velozes, cursivos, corridos. Tal como as catedrais do medievo marcadas por arcos, curvas, ogivas e altas abóbodas destinadas a oferecer aos cantos ressonâncias celestiais, a caligrafia gótica pretendia-se eterna. Decisiva, mas apenas efêmera.
A imponente Catedral Metropolitana de São Paulo, a Catedral da Sé, um dos cinco maiores templos neogóticos do mundo, na realidade é uma edificação moderna (iniciada em 1913, concluída em 1967, remodelada em 2002) nas cercanias de onde foram erigidos os dois antecessores.
Por ironia, nos últimos quarenta anos, a sede arquiepiscopal paulista serviu como cenário para dois atos inter-religiosos emocionantes, transcendentais, únicos em significado político.
Em 31 de Outubro de 1975 lá foi celebrado pelo Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright um ato ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado dias antes nos porões do DOI-CODI.
A secretaria de segurança paulista, então dirigida pelo coronel do exército Erasmo Dias (alcunhado de Erasmo Noites pelas ostensivas vinculações com a tenebrosa máquina da repressão) tentou diversos expedientes para desestimular o ato, inclusive uma intensa boataria sugerindo confrontos na praça diante do templo. O ato transcorreu sem incidentes, na maior ordem e respeito, com a participação de no mínimo oito mil pessoas que cabem na nave.
Dias antes, no Cemitério Israelita do Butantã, quando o Rabino Sobel, depois de examinar o corpo do jornalista, determinou que Herzog não fosse enterrado como suicida (conforme os preceitos judaicos e contrariando o laudo emitido pelas autoridades), mas como vítima da violência dos seus captores, a tensão tomou conta do país. A distensão política proclamada pelo então presidente, general Ernesto Geisel, fora desafiada pelos militares da linha-dura.
O ato inter-religioso para lembrar o assassinato de Herzog e os 40 anos do início do fim da ditadura militar também se realizou na Catedral da Sé, no aniversário da sua morte (25 de Outubro). Como pano de fundo, um clima tenso, rancoroso, fratricida. Realizado pelo Instituto Vladimir Herzog e dirigido por seu filho, Ivo, com o apoio da Oikoumene, Casa da Reconciliação, da Rede Cultural Luther King e da entidade coral “Canta S. Paulo”.
Em 1975, a Sé paulistana se transformou em trincheira da resistência pacífica. Agora, quatro décadas depois, ei-la assumindo-se mansamente como Templo da Paz, Sala dos Cantos, Casa dos Encontros e da Inclusão. Novamente espiritualizadas e humanizadas, despidas de exclusões e diferenciações, límpidas, cristalinas as três confissões celebrantes de 1975 foram ampliadas para oito (inclusive o zen-budismo).
Nas abóbodas góticas reverberaram salmos (#135 e #34), cantados à maneira gregoriana e israelense, clássicos do cancioneiro brasileiro e latino americano (“Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, “Gracias a la Vida”, Violeta Parra, “Te Recuerdo Amanda” de Victor Jarra,“Ponto de Partida” cantado por Sérgio Ricardo em pessoa) e para encerrar, quando todos se encaminhavam para deixar a Catedral da Sé, o hino protestante composto em 1779, cantado a cappella, “Amazing Grace”, Sublime Graça — inacreditável.
Rolaram lágrimas, apertos de mão, abraços e uma serena sensação de pertencimento e união. O jornalista, documentarista e diretor de jornalismo da TV-Cultura, Vladimir Herzog, 38 anos, filho de Zygmund e Zora Herzog, marido de Clarice, pai de Ivo e André, nascido na antiga Iugoslávia (hoje Croácia), teria feito um emocionante filme sobre aquela rara aliança espiritual, inter-religiosa, supra-religiosa.
Como escreveu Marco Antonio Rocha em Dias de Terror, publicado dia 24/10 no “Estadão” : “Vlado fugiu do nazismo mas os gorilas do DOI-CODI o pegaram” . O ato serviu também como um protesto contra o aumento da violência policial em São Paulo
A “Folha” não merecia ser furada.
Em 1975, dias antes da prisão e morte de Herzog, o jornal denunciou as chantagens que jornalistas a serviço da repressão publicavam contra ele. Revelada a sua morte no domingo 26/10, apesar das ordens da censura ainda vigente, o jornal (então dirigido por Cláudio Abramo), não se intimidou.
No último domingo, quarenta anos depois, por distração ou troca da guarda a “Folha” deixou a data passar em branco. Na edição do dia seguinte, segunda-feira, o diretor de plantão esqueceu de noticiar a edificante metamorfose ocorrida no grande templo católico paulistano. Ai, os plantões…