Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

As armadilhas do discurso e seus limiares

Foto: Freepik

Resenha do livro:
“Désceo Machado nas chanchadas do CBN Brasil”
(Editora Sem Prelo, Florianópolis, 2021)

No momento em que a demanda de autocritica é a palavra de ordem do momento politico e social no Brasil, o livro de Tiago de Castilho Soares propõe o exercício da crítica em que o destinatário não é o outro, mas o próprio autor. Logo nas primeiras linhas do posfácio, Diogo Araújo apresenta esta coletânea advertindo o leitor de que esse livro — “Désceo Machado nas chanchadas do CBN Brasil” — nada tem a ver com os surrados comentários acerca dos frequentadores de redes sociais. Mas Araújo surpreende o leitor exatamente no ponto em que revela ser Désceo Machado um heterônimo de Tiago de Castilho Soares.

Estaria Diogo Araújo desmanchando o prazer do texto naquilo que tem de curioso mistério? Não. Ao adiantar que Désceo Machado é o ouvinte ordinário de um programa de notícias da CBN, no período entre 2016 e 2017, Diogo Araújo torna ainda mais instigante a demanda da leitura.

O destinatário pode acompanhar, linha a linha, cada uma das reações de um ouvinte inconformado com o que é levado a crer nas edições radiofônicas de uma suspeita prática jornalística. Esta é a singular expressão ao mesmo tempo da crítica e da autocritica. O leitor pode, ao longo deste livro, acompanhar atentamente um estilo, entre leve e contundente. A ideia é não só, mas também criar modos de resistir ao que na informação é imposto como verdade.

Afinal, Désceo usa, simplesmente e de forma inusitada, ‘’um recurso mínimo e estigmatizado como incapaz de profundezas culturais: – um grupo de whatsapp”.

Trata-se, a meu ver, do exercício da crítica em que o sujeito que a exerce se dispõe, não a entrar, mas transformar a palavra de outro em bola dividida. Tiago de Castilho Soares, através de Machado, descreve o movimento de uma bola que, enquanto é chutada dos pés de um jogador a outro, arma a surpresa de marcar o gol no espaço jamais esperado por todos que se encontram dentro do mesmo jogo. O jogo de que aqui se trata é o politico, nos termos de uma disputa de interesses cujos adversários, ou aliados, são o governo e a mídia jornalística; a bola com o que se joga é palavra lançada da boca de um para a de outro.

Neste cenário midiático de enganoso valor, o personagem Désceo Machado é a voz que não ressoa na torcida. Não lhe interessa quem perde ou quem ganha na interminável partida dos discursos. Contudo reage às trapaças discursivas de um invisível juiz que determina impedimento só para ver ganhar o adversário escolhido da vez.

Escrito ao estilo de crônicas, a coletânea de comentários oferece uma sequência de registros que dão o valor de documento. Cada nota, tomando sempre como referente a edição de um programa radiofônico datado da CBN, traz a indicação de acontecimentos cruciais relativos à histórica politica recente deste país. O ouvinte fiel e cotidiano da Rádio CBN abarca o panorama da crise governamental destacando o intervalo entre 2016 e 2017, momentos que se seguiram ao impeachment de Dilma Rousseff e ao patético governo de Michel Temer.

Há, neste estilo de escrita crítica, a explicitação da prática do discurso como estratégia. Como bem nos ensinou o filósofo francês Michel Foucault, a cada vez que um faz referência às palavras de outro não é o caso de se deter no conteúdo das palavras proferidas ou relatadas. Pelo contrário, trata-se de se ater ao que os falantes fazem com as palavras, as que assume como suas ou as que atribuem a outros; mais precisamente, a questão é de saber o que os homens fabricam com palavras quando falam. Eis aí a certeira estratégia discursiva de Désceo Machado.

Para que o alvo recaia sobre o trabalho da imprensa, o campo de batalha de discursos é o multifacetado noticiário canalizado e, ao mesmo tempo, totalizado por um programa da CBN. Tem-se, na série de edições selecionadas em Désceo Machado nas chanchadas do CBN Brasil, dia a dia registradas em comentários insinuantes, o ponto de sustentação de um jogo que se faz nas e com as palavras. Intencionalmente ou não, Tiago de Castilho Soares acaba por nos oferecer um valioso material para um diagnóstico da história política brasileira recente. Em termos benjaminianos, seu trabalho nos auxilia a investigar não o que aconteceu, mas como aconteceu, na sequência de fatos, o que hoje vivemos especificamente neste país.

O problema que se ressalta nas crônicas não diz respeito a confrontar o que se passa no plano da realidade e o que se passa no plano das palavras. Trata-se antes de, ao pé da letra, fazer aparecer o discurso em seus limites.

Exemplo desse procedimento, entre vários outros, vê-se na crônica “Dois vacilos de Sardenberg [6 de julho]”, em que se flagra dois erros de cobertura: as manchetes abrindo o programa acerca dos ‘’dois policiais que perseguiram e mataram um negro que vendia CDs piratas em frente a uma loja” e o erro do apresentador que, em flagrante ato falho, chama Lula de “presidente”. O leitor há de perceber na retomada proposital dos dois deslizes que Désceo longe de pretender atentar para a verdade dos fatos, quer despertar a atitude crítica sobre a armadilha do discurso. Ao mesmo tempo, por involuntário engano, escancara a perspectiva a partir de onde constrói os fatos. Esta atitude concomitante de critica e análise é a marca do conjunto de textos que compõem esta coletânea.

Em Minúcias do discurso da grande imprensa [13 de dezembro], Castilho diz, sem rodeios a que vem. Focando a mídia jornalística onde a essência de sua missão se define pelos interesses familiares (Mesquitas, Frias e Marinhos), anota o procedimento fundamental a reger a crítica de todo leitor: “Para compreender o lugar do discurso de um comentador político, por exemplo, é necessário entender como seu discurso se faz em relação a outros comentadores da política”. Em síntese, é preciso estar atento à relação entre certo discurso e outros discursos.

Pode se objetar que Tiago, incorporando a voz de Désceo, só faz somar seu próprio discurso ao da CNB, alvo de sua crítica. Mas não vale cair nesta fácil armadilha que apaga o valor singular do exercício crítico operado na contraposição dos discursos. Basta atentarmos para todas as vezes em que, no fio do conjunto de textos aqui agrupados, usa-se o verbo esquecer, notadamente em terceira pessoa. Aleatoriamente escolho apenas uma ocorrência exemplar na operação do discurso da crítica dirigida a um conjunto de programas radiofônicos da CBN.
Poderia causar alguma estranheza reconhecer que a CBN apoia tanto o governo de Michel Temer como o discurso do MPF para incremento de poder punitivo do Estado contra a política, o epicentro dos vícios e males da sociedade; mas os dois apoios se complementam, porque fazem esquecer (grifo) que o que há de podre na política tem origem no poder e nos interesses econômicos. (Fazer esquecer os interesses econômicos [1 de julho].

Assim o verbo esquecer, ocorrendo em suas variações gramaticais de pessoa e tempo, não remete ao conteúdo esquecido. Chama sim atenção para operação do discurso que para valer-se precisa apagar outros com os quais trava a batalha dos poderes na cena da política, tomada como instituição e como espaço social de luta. Désceo Machado é então esta personagem, que materializa uma certa figura de sujeito crítico, ou seja, aquele que não só diz não, mas revela as ferramentas pelas quais compõe sua recusa e resistência

Por que, enfim é importante ler este livro? Difícil responder numa resenha que tenta fugir à tentação de carimbar nele uma marca, seja de estilo, de gênero ou de conteúdo. É justamente a fuga de uma forma, de uma identidade que dá à coletânea seu traço de singularidade. Percorrendo de uma crônica a outra, a impressão que se tem é de um livro escrito para escapar ao jogo de certezas, repetições de ideologias.

Em vez, como mencionei antes, de ditar o que deve ser verdadeiramente dito, a escrita do autor produz uma constante sensação de indecidibilidade. Isto porque não se quer trocar um discurso por outro, e sim escancarar o jogo dos que sempre, ao falar, esconderam o próprio jogo. Constantemente referidos como os destinatários da crítica, os nomes dos apresentadores de cada edição radiofônica da CBN — Merval Pereira, Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg — são flagrados fingindo não ser o que são, ora neoliberais, ora antipetistas.

A leitura de Désceo Machado nas chanchadas do CBN Brasil, mesmo que errática em seu percurso e ritmo, ainda que em diagonal, sem projeto temático, vale por momentos do gozo em desfazer o emaranhado dos discursos erigidos no cenário político brasileiro. Os comentários a cada programa rádio-jornalístico da CBN funcionam como agulha que desmancham os nós entre um emaranhado de palavras e outras. Isto, para enfim pegar em flagrante o acontecimento discursivo enquanto em vias de fabricação.

Nada se atesta na tentativa obsessiva de intervir na realidade politica; porque nada deve ser atestado, apenas o processo de um arquivo jornalístico em ruínas. Depois de perpassado um punhado de textos, certamente o leitor terá a impressão de haver se libertado da ilusão da verdade e de ter descoberto enfim como aquele que tem privilegiado acesso à tomada da palavra constrói para si sua conveniente verdade.

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Pedro de Souza é professor de linguística na UFSC.