Não existe vida social sem confiança. Relacionamentos se pautam por gestos de reciprocidade, atitudes aceitáveis e discursos verdadeiros. Casamentos, amizades e sociedades empresariais dependem de laços de confiança para se efetivarem. A confiança cria e alimenta ambientes seguros, previsíveis, estáveis e onde os limites parecem claros. Correntistas precisam acreditar que os bancos guardarão seu dinheiro em segurança e que serão capazes de restituí-lo quando solicitado. Cidadãos precisam acreditar no sistema eleitoral para participar do processo de escolha dos seus representantes e atestar nos resultados dessas decisões. Pacientes precisam acreditar que médicos, remédios, vacinas e antídotos funcionem. Pais precisam acreditar que seus filhos estarão protegidos e serão educados nas escolas que escolheram. Indivíduos precisam acreditar que as notícias que lhes chegam são fiéis aos fatos, são proporcionais e equilibradas, e foram devidamente confirmadas pelos jornalistas. E até mesmo criminosos – que economizam nos escrúpulos – precisam confiar nos seus comparsas e métodos para seguir praticando ilegalidades. Por isso, não é exagerado dizer que a confiança funciona como a argamassa que ajuda a unir as partes da grande construção coletiva que é a vida em sociedade.
Com uma natureza tão essencial para a experiência humana, a confiança é um tema de estudos de muitas áreas pois afeta pessoas, organizações e instituições. Todos se preocupam com ela, e ninguém parece disposto a ignorá-la. Você já percebeu. Este livro trata de confiança, mas seria complexo demais abordá-la aqui por inteiro. Este livro se aproxima de uma fatia estreita da confiança: a que atravessa os terrenos da mídia e do jornalismo, afetando aqueles que produzem, espalham e consomem notícias e informações. Portanto, este livro trata da confiança nos meios de comunicação e de credibilidade jornalística, na esperança de oferecer novas contribuições para a compreensão de suas dinâmicas de formação, oscilação, ganho, perda e conservação.
A ideia deste livro – “Credibilidade Jornalística” (Ed. Insular, 2024) – surgiu em 2021, quando uma rede de cientistas brasileiros apresentou um projeto de pesquisa ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em busca de financiamento. A motivação inicial era abordar um conceito muito invocado no jornalismo, mas tratado frequentemente de forma tangencial: credibilidade. O termo está presente no imaginário de repórteres e editores, sustenta campanhas publicitárias dos meios de comunicação e compõe manuais profissionais. Apesar disso, é definido de forma apressada, superficial, confusa, inconsistente e circularmente retórica. Mas como algo tão importante não atrai a atenção científica ou reflexiva que deveria? Como pensar o tema da credibilidade pelas lentes do jornalismo brasileiro? É possível elaborar e formular subsídios que ajudem organizações noticiosas e jornalistas nacionais a entenderem melhor o fenômeno, podendo fortalecer suas posições e incrementar suas taxas de confiabilidade pública?
No início de 2022, o CNPq passou a apoiar a proposta apresentada pelo grupo, permitindo o desenvolvimento do projeto “Índice de Credibilidade Jornalística: formulação de indicadores de fortalecimento do jornalismo para o combate aos ecossistemas de desinformação”. Este livro é um dos frutos do empreendimento que reuniu dezenas de pesquisadoras e pesquisadores das universidades federais de Santa Catarina (UFSC), Pará (UFPA) e Sergipe (UFS), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Universidade de Brasília (UnB). Em quase três anos de trabalho contínuo, o Projeto ICJOR investigou a questão da credibilidade num preocupante contexto de aumento da desinformação, desenvolveu metodologias próprias, formulou indicadores e categorias de análise, testou hipóteses, fez varreduras bibliográficas, promoveu e participou de eventos, contribuiu para orientações de dissertações e teses, e compartilhou resultados preliminares em congressos ou em seu site dedicado.
A partir de uma composição estratégica da equipe – contemplando todas as regiões do país –, o projeto foi capaz de produzir reflexões teóricas sobre o tema e de propor um sofisticado sistema que permite atribuir notas a meios de comunicação tradicionais e alternativos, levando em conta indicadores de qualidade nos produtos jornalísticos, na inovação e nas gestões das organizações do setor.
Como qualquer pesquisa aplicada, o ICJOR está em permanente estado de testes, sob o escrutínio da academia, de profissionais, do setor produtivo e da sociedade. As condições que originaram o projeto sinalizam seus limites, mas também impulsionam a equipe a aperfeiçoá-lo e a buscar novos caminhos. Em dezembro de 2023, por exemplo, o ICJOR promoveu o 1º Qualijor Amazônia, evento que reuniu profissionais e pesquisadores para discutir o desafio da sustentabilidade financeira de meios em regiões amplas, longínquas e desabastecidas, critérios de qualidade do jornalismo local, formas de enfrentamento da desinformação, pluralidade de oferta de notícias, credibilidade e transparência na mídia.
Parece claro hoje que uma das alternativas mais efetivas para combater a desinformação é fortalecer os ecossistemas profissionais de informação – como os meios jornalísticos –, ressaltando sua qualidade técnica e responsabilidade ética, irrigando seu terreno de credibilidade junto aos públicos. O Projeto ICJOR surgiu a partir de duas pretensões: ampliar o arsenal de enfrentamento da desinformação e sugerir soluções que atendam às demandas específicas de países do Sul Global, como o Brasil.
Sabemos que nem o sistema de indicadores ICJOR nem este livro eliminam por completo as preocupações geradas a partir da percepção de que o jornalismo e as demais instituições têm perdido credibilidade junto aos públicos nos últimos tempos. O alarme soado em todas as partes costuma produzir ansiedade generalizada e dois outros comportamentos contrastantes: o desespero (que leva à apatia congelante) e o impulso (que estimula a procura de rotas, jeitos e planos para sobreviver). Escolhemos o segundo caminho nos capítulos reunidos neste livro. Inéditos, eles reúnem parte considerável do que acumulamos na trajetória deste projeto. Oferecemos contribuições teóricas, reflexões provocativas e apresentamos dois instrumentos de avaliação que compõem a proposta do ICJOR. Este livro se soma a outras publicações e conteúdos disponíveis no site do projeto: https://credibilidade.paginas.ufsc.br
Sirva-se à vontade! Agradecemos a atenção e, principalmente, a sua confiança.
Nota
Este texto é a apresentação do livro “Credibilidade Jornalística”, organizado por Rogério Christofoletti e recém-lançado pela Editora Insular. Para baixar uma versão em PDF, acesse: https://insular.com.br/produto/credibilidade-jornalistica/
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Rogério Christofoletti é professor de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina.