Uma estimada amiga paraibana de João Pessoa me presenteou com dois livros pelo recente aniversário. Um deles é do conhecido frei Betto e tem como título “Jesus Militante”, todo ele baseado nas narrativas do evangelho de São Marcos. Esse presente é bastante atual dentro do momento político brasileiro, onde uma facção de intitulados seguidores de Cristo tomou parte da cena e tem peso suficiente para decidir a eleição presidencial, influir na composição da próxima Câmara Federal, na substituição de um terço do Senado, sem omitir sua influência nas votações estaduais e municipais.
O livro de frei Betto é baseado no Evangelho de Marcos que, assim como Mateus, Lucas e João, contemporâneos de Jesus na época do domínio e controle da Palestina pelos romanos, conta seu convívio com Cristo e transmite as mensagens deixadas por ele nos seus escritos que chegaram até nós.
É sempre impressionante, quando se trata da figura de Jesus, imaginar-se como uma figura desvinculada do clero dominante da época, dominado e comprometido com os ocupantes romanos, sem poder econômico ou político, ainda existe nos dias de hoje, passados dois mil anos, e exerce influência marcante na sociedade.
Por isso mesmo, muitos historiadores, principalmente nestes últimos dois séculos, deixando de lado sua significação religiosa, construída por seus seguidores (dos quais surgiu a Igreja, dividida pela Reforma e subdividida pelos movimentos decorrentes), quiseram ir mais longe além dos relatos santificados.
Sem entrar nessa busca, da qual surgiram numerosas escolas, livros e interpretações, me lembro de uma delas, talvez mais conhecida embora menos comentada que “A Vida de Jesus” do francês Ernest Renan, do Collège de France: trata-se da pesquisa feita pelo humanista franco-alemão Albert Schweitzer, mais conhecido como missionário na África, publicada com o título de “A Busca do Cristo Histórico”.
Quem foi Jesus? Existiu mesmo? Teve uma certa importância com seus milagres, suas parábolas, suas declarações, criou algum problema para o Império Romano, foi mesmo punido com a pena de morte? Morreu numa cruz ou suas mãos foram pregadas acima da cabeça num madeiro ou estaca? Que tipo de pregação ele fazia?
As perguntas, os debates são muitos e não diminuem à medida que a religião de Jesus, transformada em cristianismo dado o caráter messiânico assumido, chegou às Américas. Do lado hispânico-português, exceto a aceitação de uma parte da cultura, lendas, crendices vindas dos índios e dos escravos africanos, o cristianismo católico pouco mudou até meados do século XX.
Entretanto, os ingleses levaram para a América do Norte um protestantismo puritano e anglicano em transformação e ruptura, que se transformou diante das mudanças sociais norte americanas, crescimento econômico, Guerra Civil (que não solucionou a questão racial imanente). Desse protestantismo surgiram as vertentes neopentecostais, cujos traços principais que as distinguem dos luteranos e calvinistas europeus são uma refundação do cristianismo original pregado por Jesus. Esse cristianismo é substituído por uma mistura com o judaísmo dos profetas e a substituição da linguagem pacífica do cristianismo nascente pela recuperação da linguagem guerreira dos reis, dos nacionalistas monoteístas e do próprio deus Jeová contra os vizinhos idólatras. No fundo, é o cristianismo do western, da sobrevivência dos imigrantes brancos contra a população autóctone indígena.
É esse cristianismo neopentecostal branco evangélico que se transformou no principal suporte do capitalismo norte americano e que hoje apoia Donald Trump e ameaça os Estados Unidos de secessão.
E aqui chegamos aos dois Evangelhos vindos do mesmo Jesus, do mesmo Cristo.
O evangelismo neopentecostal brasileiro, cuja doutrina conservadora, machista, agressiva e guerreira já foi adotada por uma questão de sobrevivência pelas denominações protestantes tradicionais, é o filho dileto do neopentecostalismo norte americano. Ele não se preocupa com a situação de pobreza de seus seguidores, citando duas frases do próprio Jesus: “os pobres sempre os tereis convosco” e “o meu Reino não é deste mundo”. Sua pregação básica é o “Reino dos Céus”, para depois da morte.
O capitalismo, com suas desigualdades sociais, não é nenhum problema para os novos guerreiros cristãos – Silas Malafaia, Edir Macedo, Cláudio Duarte, Marco Feliciano e outros tantos – que oferecem aos seus seguidores o Evangelho da Prosperidade, sem uma discussão social de onde pode vir essa enganadora e quimérica prosperidade econômica.
O Jesus Militante do frei Betto é pelo Evangelho da Teologia da Libertação, também defendido por Leonardo Boff, segundo o qual a preferência teológica do cristianismo é pelos pobres e pelo fim da desigualdade social. Sem gabinete do ódio e sem linguagem guerreira do bem contra o mal, que poderá justificar todos os excessos e crimes depois das eleições.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.