Quando a frota de Cabral ancorou em Porto Seguro, encontrou uma população de milhões de indivíduos, centenas de etnias, enorme diversidade cultural e várias famílias linguísticas. Dizer que o Brasil foi descoberto por Portugal representa, de imediato, mais do que uma ignorância sobre informações elementares, o equívoco do preconceito eurocêntrico que surge na expansão colonial-mercantil e, ainda hoje, reproduz o racismo e a opressão contra os segmentos sociais de origem “periférica”.
Em “Miséria da cidadania” (Estado de Minas, de 25/09/1999), o sociólogo Ronald Rocha explica que “o conceito de cidadania surgiu com as sociedades civis e nações burguesas, quando a noção jurídica de pessoa, ao confundir-se com a figura do proprietário, ser humano cuja vontade impregna suas mercadorias, tornou-se um momento particular da liberdade”. Neste mesmo visor, a moralidade vigente, autoproclamada como atemporal, expulsa do evento considerado originário da nacionalidade brasileira os indígenas e os negros escravizados. Aqueles, por desconhecerem o mercado; estes, por serem mercadoria reificada. Tais descompassos perceptivos são hoje potencializados pelo culto acrítico aos padrões comportamentais do capitalismo avançado num mítico “primeiro mundo”. A cidadania burguesa no Brasil se mostra, portanto, excludente, desde o cabelo até a ponta dos pés.
Como remédio para a cidadania burguesa, um dos antídotos mais eficazes se encontra na democracia viral. A caixa de Pandora foi aberta novamente. Com ela, a esperança democrática se espalha efetivamente. Desse modo, a comunicação multidimensional se realiza sem “amarras proprietárias”. Se antes, o sentido tradicionalista da ordem do discurso, que se desloca da liderança aos liderados, recebeu inúmeros estímulos, experimentamos, com a rede multimidiática, a grande chance de contemplar o sentido discursivo promovido também pelos liderados. Sendo assim, o “capital simbólico” pode ser ouvido e repercutido, de forma ampliada e continuada, para que todos possam interferir nas instâncias decisórias de poder, graças a um processo participativo mais ao gosto da democracia direta.
Podemos atestar também que a democracia viral levou a adiante o processo de realização da liberdade política, instituindo a prática da liderança compartilhada entre os membros da “aldeia global”, em escala mais plena de autonomia e liberdade de expressão. Cada um de nós, como agente ativo das tecnologias digitais, viabiliza e abastece a “comunicação viral”, cujo propósito consiste em gerar canais de escuta cada vez mais eficazes, no tocante à absorção do conhecimento e da sabedoria multiautoral. A mídia, desse modo, se torna não só campo de especialistas, mas canal da opinião pública no sentido mais realista do termo. Na contemporaneidade, a opinião pública não vem sendo formada somente pela versão comunicativa de quem tem a “opinião publicada”, após o crivo convencional das “ilhas de edição”.
O celular e o tacape
No artigo “Democracia viral”, publicado no jornal espanhol Diario de Jerez, de 09/03/2015, o jurista Manuel Pareja expressa parecer importante sobre o tema em questão [agradecemos a Gustavo Tanus pela tradução do artigo “Democracia viral”, escrito por Manuel Pareja. Texto original, disponível em http://www.diariodejerez.es/article/opinion/1979706/democracia/viral.html]. Diante dos atropelos antiéticos que tomam conta da administração pública pelo mundo, o colunista apresenta uma imagem instigante sobre o emparedamento social que ainda nos afeta: “A democracia é como uma via de água que busca uma rachadura ou descobre um canal através do qual possa escapar”. Para solucionar esta questão espinhosa, Pareja deita esperanças na proposta da democracia viral:
“Com maior ou menor esforço, irá impor-se a sensatez, e as formações que queiram o monopólio do poder para gerir o bem comum, terão de ser transparentes. Haverão de impor-se, entre outras muitas medidas, listas abertas, o direito primário ou submissão a veredito popular, sobre o investimento de cada euro de despesa pública. É a democracia viral; está aqui, e as elites do poder não a tem notado: nem aqueles que estão, nem aqueles que batem à porta. O tempo colocará cada um em seu lugar, de forma gradual, sem alarde, e as velhas formas serão substituídas por outras que levam a sério o cidadão, único protagonista da agenda política; o mercado funciona se está a serviço das pessoas. Quando Tocqueville escreveu Democracia na América, o mundo não estava interconectado. O futuro se constrói hoje, e nós o escrevemos. Quem está dentro?”
Esperemos que o mundo abrace a democracia viral, tanto no discurso como na ação. Em termos brasileiros, a considerar o Marco Civil da Internet (Lei no. 12.965, de 23/04/2014), estamos avançados. O texto legal muito bem destaca: “A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I – o reconhecimento da escala mundial da rede; II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III – a pluralidade e a diversidade; IV – a abertura e a colaboração; V – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – a finalidade social da rede”. Na prática, porém, temos o celular em uma das mãos e o tacape na outra.
O analfabetismo e a falta de letramento digitais ainda se expressam, com grande força, por nossas bandas. Com base nos últimos dados da Anatel (2014), o Brasil tem em seu poder 279,4 milhões de celulares, equivalendo a 137,5 celulares por 100 habitantes. Entretanto, mesmo sendo a maior base de usuários de tablets da América Latina, segundo a consultoria eMarketer (2015), estima-se que 34,7 milhões de brasileiros acessam o aparelho, significando 30,5% dos internautas e 17% da população nacional. A exclusão digital ainda atinge, em nosso país, 84 milhões de pessoas sem acesso à internet. Conforme os dados publicados pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 21/09/2015, 57% da população mundial, ou seja, quatro bilhões de pessoas, continuam offline.
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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor universitário, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários