Era um tal de Deus para cá, diabo para lá. Em noites de tempestade, os Souza todos queimavam a palha benta e se escondiam debaixo da mesa, rezando para não serem castigados com os raios que atingiam Belo Horizonte. Por isso, Henriquinho cresceu com um medo danado do fogo do inferno. Só depois superou aquilo e, no fim das contas, virou um rebelde que fazia piada do assunto. Com o codinome Henfil, abreviação de Henrique de Souza Filho, tornou-se um dos maiores cartunistas do país, conhecido por seu humor endiabrado. Se estivesse vivo, o artista faria 70 anos na quarta-feira [5/2].
Um evento no Museu da República, no mesmo dia, às 19h, vai comemorar a data, com debate entre Paulo Betti, Tárik de Souza, Nelson Rodrigues Filho e o chargista do GLOBO, Chico Caruso. Ao mesmo tempo, serão lançadas cinco edições da lendária revista “Fradim”, criada pelo artista, morto em 1988. Um evento até modesto para a fama que Henfil já teve. Com seu humor ácido, politicamente incorreto, ele foi um dos maiores críticos dos problemas do Brasil – especialmente a ditadura. Só que, 26 anos depois de sua morte, apenas uma pequena parte de sua obra está acessível às novas gerações.
Henfil passava tantas horas debruçado sobre sua mesa de desenho que, com 1,70m, acabou com a postura curvada. Acabou também com uma produção tão intensa que seu filho, Ivan Cosenza de Souza, mantém hoje em casa cerca de 15 mil originais guardados. Dessa produção resultaram as edições da “Fradim” e cinco livros lançados pela Geração Editorial. A Nova Fronteira tem em catálogo 12 livros infantis sobre o sapo Ivan, personagem que Henfil criou em homenagem ao filho. Já as cinco obras que o artista publicou em vida, pela Record, seguem fora de catálogo. O contrato caducou.
– Às vezes, alguns editores ficam com aquela visão de trabalho datado. Mas a obra dele é muito parecida com a do Quino (argentino criador da Mafalda) – diz Ivan, que há cinco anos criou o Instituto Henfil, pensando em disponibilizar o acervo do pai para consulta, mas reclama que, por falta de apoio, até hoje não conseguiu uma sede.
Sônia Jardim, vice-presidente do Grupo Record, que publicou livros de Henfil, como “Cartas da mãe” e “Henfil na China”, argumenta que seria preciso repensar as edições para relançá-las.
– Eu era superfã do Henfil. Mas, por exemplo, “Diretas já” era muito ligado àquele tempo. Para ser relançado precisaria de um tratamento mais histórico do que comercial – defende.
A dificuldade é que a obra de Henfil se situa numa zona entre o cartum e a charge, diz o pesquisador de linguagens gráficas da UFRJ Octavio Aragão.
– O que define o cartum é a atemporalidade. Um bom cartum é bom em qualquer época ou lugar. Já a charge é mais ligada ao momento de sua publicação. O Henfil habita nesse complicado meio-termo. Mas acho exagero dizer que ele é datado – afirma o pesquisador, que acredita que Henfil seria alvo de processos hoje, por conta do humor politicamente incorreto.
O humor contestador veio da barra pesada na família. Além do medo do pecado, os meninos (Henfil e seus irmãos, o sociólogo Betinho e o compositor Chico Mário) não podiam se machucar, por causa da hemofilia. A casa da infância, em Minas, era toda acolchoada para ninguém correr risco. Risco que o flamenguista ignorava, claro, ao jogar bola com outros moleques. E repetiu sete vezes na escola, para terror dos professores.
Os “fradins” Cumprido e Baixinho foram uma forma de comprar briga com o passado. “Sou sadio porque vendo minhas neuroses nos jornais”, dizia o cartunista, já famoso, brincando que sua graça vinha toda daquela criação repressora – que ele já desafiava quando era menino, sendo sete vezes reprovado na escola.
– Não é fácil ser mineiro, não, sô. Eu acho que o humor dele é um humor cristão. No meio da irreverência do Henfil, é fácil identificar a vontade de gozar dos padres. É uma forma de enfrentar uma verdade avassaladora para ele – afirma Ziraldo, que foi amigo de Henfil nos tempos do “Pasquim”.
“Ele era insuportável!”
Sua obra tornou-se uma forma de rir na cara dos tabus. A coragem de desafiá-los também veio cedo. Sua primeira publicação foi o jornalzinho “W.C.”, que só circulava dentro de casa e trazia notícias de extrema relevância: “Henriquinho está há 12 dias sem tomar banho”.
– Ele era insuportável! – lembra o cartunista Jaguar, também companheiro no “Pasquim”. – Eu bebia demais, era muito doido, saía com Madame Satã. Ele se metia na minha vida, era impressionante! Achava que eu ia me acabar e ficava puto comigo, me dizia para parar. Quando ele me contou o nome dele, eu disse: “Porra, Henfil? Parece um assobio!”
Henfil era implacável em suas críticas, o que lhe rendeu uma série de desafetos. Nos tempos do “Pasquim”, criou o cemitério dos mortos-vivos, casa do Caboco Mamadô, em que enterrava artistas acusados (por ele) de colaborar com a ditadura. Elis Regina foi uma das mais famosas a parar lá. Os dois só fizeram as pazes anos depois, quando ela gravou “O bêbado e a equilibrista”, música de João Bosco e Aldir Blanc que clama pela volta do “irmão do Henfil”, o sociólogo Betinho, exilado pela ditadura.
Seu personagem mais famoso (leia mais ao lado), dos anos 1970, era a Graúna, que vinha acompanhada do cangaceiro Zeferino, do bode Orelana e da onça Glorinha. A turma da caatinga era uma forma de ironizar a indústria da seca, o coronelismo e o “Sul maravilha”. Mesmo analfabeta, a Graúna era sabida como poucos. Já a perseguição da ditadura foi imortalizada com Ubaldo, o Paranoico, que vivia com medo de tudo.
Temporada nos EUA
Henfil ainda ajudou a criar os mascotes das torcidas cariocas, nos anos 1960, no “Jornal dos Sports”. O Flamengo ficou com o Urubu; o Vasco, com o Bacalhau; o Fluminense, com o Pó de Arroz… A maioria dos torcedores usa as imagens até hoje.
Em 1973, a homofilia levou Henfil a buscar tratamento em Nova York. Mas o artista também queria ganhar o mercado americano. Um ano depois, porém, já estava de volta. E muitos viram aí um sinal de fracasso.
– É mentira que ele fracassou. O Henfil foi muito bem-sucedido – diz Ivan Fernandes, filho do cartunista, dramaturgo e tradutor Millôr Fernandes.
Ivan morou com Henfil por seis meses nos EUA e defende que o cartunista se lançou num “suicídio profissional”:
– A cabeça dele pirou porque o tratamento contra a hemofilia não deu certo. Ele começou a fazer tiras violentíssimas, e logo os jornais as cancelaram.
Numa das muitas transfusões de sangue a que se submeteu, Henfil contraiu o HIV. Morreu em 1988, faltando pouco para seu aniversário de 44 anos e sem ver as eleições diretas. Nunca votou para presidente.
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Maurício Meireles, do Globo