No primeiro dia de fevereiro de 1985, ainda diante da mistura de emoções suscitadas pelo ocaso do governo militar e pelos acontecimentos que se sucederam à eleição de Tancredo Neves, um cético Millôr Fernandes anunciava em tom profético: “Um espectro assusta o país – o espectro do humor a favor. Todas as forças reacionárias se reuniram para transmitir a ideia de que o pequeno núcleo de democratas que milagrosamente conquistou o poder é irretocável e irrepreensível. Pois em torno dele já grudou a craca parasitária do regime anterior.” De seu púlpito quadrado nas páginas do falecido Jornal do Brasil, Millôr alertava os colegas de pena para o risco de se deixar esvair do humor aquilo que é a sua essência: “(…) Cabe a nós, profissionais das transparências, não perder um minuto. Dar nome aos bois. E aos cavalos.” Dar nome aos bois é revelar o que está por detrás das aparências, enquadrando os fatos e personagens de tal modo que as pessoas possam entendê-los. A graça vem da surpresa diante dessa revelação. Por outro lado, o humor a favor é o que não revela, aquele que dá a entender que não há o que se esconder.
Vinte e nove anos depois desse manifesto (era o título do quadrado naquele dia), um velho companheiro de ofício do guru do Méier, o cartunista Jaguar, ratificou os temores de Millôr ao decretar em entrevista concedida a Arnaldo Bloch, do Globo, no domingo (23/2): “O humor não serve mais para nada”. E, mantendo o bom humor, apesar do tom de desabafo, complementou: “Quando uma charge, hoje, vai ser um acontecimento? O mundo e a internet assimilaram o humor de uma maneira que virou cocô de mosca.”
Talvez, isso seja pior do que o humor a favor. É tamanha a sobrecarga de informações, tamanha a quantidade de formas e formatos para essa informação toda que nos atinge de tantos modos diferentes, que a ruptura que o humor provoca passa despercebida, submersa.
Raras exceções
Curiosamente, isso ocorre num cenário onde a cada dia aparecem pencas de (pretensos) novos humoristas, sobretudo no teatro. Porém, diante da biografia do entrevistado, é justo se fazer um recorte e concentrar o foco deste artigo no desenho de imprensa. A tal “assimilação” está tirando das páginas de notícias – e, consequentemente, de seus leitores e daqueles que veem nelas um ofício – a experiência do desenho. Até bem pouco tempo, um sujeito se apresentava nas redações com seus desenhos debaixo do braço para pedir uma vaga de ilustrador de jornal. A porta de entrada era o humor gráfico, especialmente a caricatura. A maioria chegava com as referências já estabelecidas – Chico, Angeli, Loredano, Laerte, Leonardo, Ique. Enfim, o cara conhecia os traços, tinha alguma noção daquela arte e queria espaço para mostrá-la. O contato com o editor de arte ou com os ilustradores era uma experiência única, sorvida de forma inesquecivelmente prazerosa. O aprendizado se dava na labuta.
Esses caras estão desaparecendo. Alguns conseguem passar pelos processos de seleção para estágio, planejados de modo a fazer que o portfólio (a amostra do talento do candidato) seja a última coisa que o avaliador tenha diante de si. Os que chegam trazem outras referências, igualmente ótimas, deve-se frisar, porém exteriores ao universo do jornalismo que demanda do desenhista de imprensa a arte de dar nome aos bois.
Voltando ao Jaguar, seu desabafo torna-se perfeitamente aplicável à discussão que propomos quando ele afirma: “(…) Ele [o humor] anda muito sério, muito inteligente, sofisticado, mesmo quando é bom. O pessoal não se preocupa mais em fazer rir. A gente se sente feliz da vida quando consegue entender a piada.” Salvo raras exceções, parece que, ao absorver as novas tecnologias de expressão gráfica – necessárias, inadiáveis –, os desenhistas perderam a noção do que se pode fazer com elas para revelar que o rei está nu. Acabam ajudando a vesti-lo.
A opção errada
O resultado disso é a adoção de um pensamento que restringe as categorias de desenho de imprensa a determinados espaços, a determinadas funções na página de notícias. Há o lugar da caricatura, o lugar (cada vez menor) da charge, o lugar da ilustração… A exceção são os quadrinhos, que recuperaram espaço como forma narrativa nos jornais. Mesmo os infográficos ilustrados estão perdendo espaço para a visualização de dados, num curioso movimento de autocensura. Neste caso específico, despreza-se a capacidade descritiva da ilustração, além de seus atributos narrativos para se adotar um padrão que rejeita o uso de recursos como as remissões e dialogismos dos desenhos – que poderiam facilitar o entendimento – em troca de uma objetividade muitas vezes desinteressante, porém funcional.
Fazendo eco a Rui de Oliveira, “se é arte, não pode ser funcional”. Curiosamente, guardadas as devidas proporções, subtrai-se do desenho de imprensa o equivalente à graça que o estilo do autor confere ao texto jornalístico. Conseguiu-se inventar um desenho chato, previsível para nossos jornais, mesmo os digitais. Nestes, ainda há a esperança de que, na busca por formatos e linguagens mais adequados às suas características, talvez se possa reencontrar o valor do desenho de imprensa que insistimos em perder.
Esse desenho divide com o texto e as fotografias a forma do jornal, sobretudo no que se refere a facilitar o entendimento. Num depoimento a Tárik de Souza, depois transformado em livro pela Editora Vozes nos anos 1980, Henfil usou a figura de um incêndio para explicar como entendia o desenho de humor (político). Para o pai da Graúna, o desenho deveria ajudar as pessoas acuadas pelas chamas que, de onde estavam, não conseguiam ler ou ouvir os outros dizerem que o socorro estava próximo. Segundo essa figura, o desenho era a mediação mais segura e viável para se fazer entender naquela situação. Exatamente no momento em que o país se vê diante de protestos, escândalos e indefinições de todas as ordens, pode-se estar fazendo a opção errada ao conferir ao desenho de imprensa a função de cocô de mosca.
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Ary Moraes é professor adjunto da Escola de Belas Artes da UFRJ