Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Príncipe”, “O Pequeno Príncipe” e a complexidade da realidade

(Imagem: Divulgação)

“O Príncipe”, escrito no século XVI por Nicolau Maquiavel, é uma obra que oferece vários conselhos no campo da ação política. Essas recomendações são marcadas pela astúcia, realismo (baseado na observação empírica) e secularismo (afastamento de questões religiosas). O livro destaca a importância da habilidade política e do pragmatismo como meios eficazes para a manutenção e consolidação do poder. Maquiavel sustenta que um príncipe (ou qualquer governante) deve estar preparado e disposto a adotar os mais variados expedientes, sem afastar a dissimulação e a crueldade, se necessários, para viabilizar a força e estabilidade de sua posição política.

O desprezo por uma pauta moral definida e por valores substancialmente relevantes no convívio humano tornam a obra original. Para Nicolau, o príncipe não tem que fazer o bem ou o mal. Para manter-se no poder, o príncipe precisa aprender a conseguir não ser bom. Não se trata da política como ela deveria ser, mas como ela é. Maquiavel segue a “ética da necessidade”, e não esconde essa abordagem. Adverte, com energia, que os desejos não devem ser tomados como realidades.

Não são poucos os que que indicam o surgimento da ciência ou teoria política moderna a partir da edição de “O Príncipe”. A obra, embora significativamente controversa, colocou Maquiavel na condição de uma das mentes mais importantes na história da humanidade. Nenhum estudo minimamente consistente da política dispensa a análise cuidadosa dos escritos de Maquiavel, em particular o livro “O Príncipe”.

“O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry é uma encantadora história sobre as aventuras de um jovem príncipe. Ele viaja por diferentes planetas, cada um habitado por personagens singulares, enquanto mergulha em questões profundas relacionadas com a natureza humana e os valores da vida. O livro, que li duas vezes, transmite importantes lições sobre amor, amizade, solidão e responsabilidade. A escolha do inocente e cativante pequeno príncipe como personagem principal (sem esquecer a instigante raposa) funciona muito bem como instrumento para dialogar com a sensibilidade dos leitores e provocar importantes reflexões acerca do que realmente importa na jornada da existência.

Recentemente, as duas obras e seus respectivos autores foram confundidos em uma sustentação oral na tribuna do Supremo Tribunal Federal. Um descuidado advogado registrou que a frase “os fins justificam os meios” teria sido dita (ou escrita) pelo autor do livro “O Pequeno Príncipe”. A afirmação, no entanto, é comumente associada ao autor do livro “O Príncipe”, o italiano Nicolau Maquiavel.

Embora a expressão “os fins justificam os meios” seja frequentemente atribuída a Maquiavel, ela não aparece nesses exatos termos nas obras escritas por ele, em particular no livro “O Príncipe”. Li essa obra clássica três vezes, incluída a versão com comentários de Napoleão, e não me recordo de ter encontrado tal assertiva. Entretanto, Maquiavel expressou ideias semelhantes de forma mais elaborada em sua obra. Ele argumentou que um governante deve ser pragmático e estar disposto a tomar as medidas necessárias, mesmo que sejam moralmente questionáveis, para manter o poder e a estabilidade de seu governo. Portanto, a ideia de que certas ações podem ser justificadas em nome de um objetivo maior é uma interpretação adequada das ideias de Maquiavel.

Portanto, embora Maquiavel não tenha registrado a tal frase, ela expressa com boa dose de propriedade o pensamento do ilustre escritor. Como teria afirmado (não para Maquiavel) o alagoano Natalício Tenório Cavalcanti: “se não disse, deveria ter dito”. É preciso anotar, portanto, que maquiavélico deve ser sinônimo de pragmático. Não é rigorosamente correto associar o maquiavelismo à maldade pura e simples.

Aliás, existe uma interessante discussão acerca dos verdadeiros destinatários da obra de Maquiavel. O célebre florentino escreveu para os príncipes (governantes) ou para quem precisava resistir a eles (o povo, em regra)? É conhecida a afirmação de Rousseau: “esse homem não ensina nada aos tiranos, eles sabem muito bem o que têm de fazer, mas instrui o povo a respeito do que tem a temer”. Parece que o próprio Maquiavel resolveu a “dúvida” ao alertar: “Entretanto, como é meu desejo escrever coisa útil para os que tiverem interesse, mais conveniente me pareceu buscar a verdade pelo fito das coisas, do que por aquilo que delas se venha a supor”. Essa última frase também contém o crucial ingrediente do pragmatismo.

A dimensão prática acompanha a obra mais famosa de Maquiavel. O livro “O Príncipe” foi transformado em um poderoso guia para a tomada de decisões e um útil roteiro sobre o melhor momento para agir. É frequente o estudo de Maquiavel para melhorar as técnicas e os resultados da gestão nos setores público e privado.

Como bem sustentou Edgar Morin, a complexidade é um dos traços mais importantes da realidade, se não for o principal. A multidimensionalidade é um dado inafastável do real. Não é possível explicar ou entender o contexto vivenciado isolando uma causa ou um fator. Eles são inúmeros e se interrelacionam. Nessa linha, o pensamento humano mais significativo e consistente que recaí sobre essa realidade também está caracterizado pela complexidade. A busca por teorizações e explicações simples e fáceis é tão ingênua quanto equivocada. É preciso, portanto, ler as obras mais importantes, notadamente os clássicos. É crucial refletir sobre o conteúdo explorado. É indispensável criticar as formulações apresentadas. As conclusões, sobre esse ou aquele setor da realidade, demandam tempo e esforço de sistematização.

A superficialidade, justamente por não captar as intrincadas relações do real, não é uma boa conselheira acadêmica, científica, política, sociológica ou de qualquer outra natureza. Infelizmente, vivenciamos uma das vertentes mais perversas dessas visões simplistas. Inúmeros setores da sociedade, ainda nas trevas medievais, alimentam o absurdo maniqueísmo da luta do bem contra o mal como a perspectiva predominante para entender o mundo. E esse viés funciona como uma excelente zona de conforto, preguiça ou incapacidade intelectual de ler, entender e interagir com um mundo crescentemente complexo e multifacetado. Com efeito, dá muito trabalho e exige muito esforço trabalhar com dados, argumentos, debates e formar opiniões e convicções próprias, alinhadas ou não com grupos ou movimentos já existentes. É mais fácil e mais cômodo aderir ao suposto movimento do “bem” contra o “mal” ou coisa parecida.

Sobre o episódio da fala desastrada na tribuna do STF não tratei, nem tratarei, das inúmeras imagens jocosas produzidas em função da confusão feita pelo desatento advogado. Dezenas de brincadeiras, memes e trocadilhos circularam pelas redes sociais nos dias seguintes ao fatídico pronunciamento. Afinal, como foi dito, “os fins justificam os memes”.

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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional