O Brasil e sua mania de grandeza garantiram a ditadura no Uruguai, nove anos antes que ela fosse imposta por Juan María Bordaberry e seus tutores militares, em junho de 1973. Com 8,5 milhões de km², o Brasil é 48 vezes mais extenso do que o Uruguai, com seus restritos 175 mil km². Em termos geográficos, poderia parecer uma simples estanciaem comparação com o grande irmão do Norte.
O problema é que os militares brasileiros, que derrubaram o presidente João Goulart em 1964, acreditavam nisso – e não permitiriam em seu ‘quintal’ qualquer ameaça de tom esquerdista, como legítimos representantes do supremo irmão do continente, os Estados Unidos, alarmados desde o início da década com a erupção do regime de Fidel Castro a 145 km das praias da Flórida.
Anos antes do golpe, o líder cubano pedia para os uruguaios botarem suas barbas de molho: “Vocês podem vencer, mas no outro dia terão os brasileiros metidos lá”, advertia Fidel a Maurício Rosencof, um dos líderes do grupo guerrilheiro Tupamaros. Dito e feito. Os brasileiros chegaram lá antes do golpe. No final dos anos 1960, o delegado Sérgio Fleury, líder do ‘Esquadrão da Morte’ no Brasil, treinava os policiais uruguaios que dariam forma à Dirección Nacional de Informaçión y Inteligencia (DNII), financiada com fundos da CIA. A doutrina da repressão era dada pela sucursal local da Oficina de Seguridad Pública (OPS, em inglês), órgão de fachada da CIA que até ser extinta, em 1974, um após o golpe, formaria 1 milhão de policiais no Terceiro Mundo – 10 mil deles com cursos nos Estados Unidos.
Desde 1969, a repressão uruguaia tinha um expert que falava inglês e português: o norte-americano Dan Mitrione, o novo chefe da OPS, vinha do Brasil, onde desembarcou um ano antes do golpe de 1964. Quando saiu, quatro anos depois, a OPS tinha adestrado 100 mil agentes, 1/6 da força policial brasileira. Em apenas quatro anos, desde a chegada de Mitrione, 16 altos chefes da polícia uruguaia tinham frequentado escolas da OPS e da CIA nos Estados Unidos. Só em 1970, ano em que Mitrione foi sequestrado e morto pelos “Tupas”, 1.000 policiais fizeram cursos antimotim no Uruguai.
Fórmula replicada
O que o Brasil mais temia, contudo, era um grande motim – pelo voto – do povo uruguaio, subvertendo o rodízio que há dois séculos repartia o poder no país entre dois partidos conservadores, os blancos e os colorados. Um total de 56 governantes colorados dominou o país por 141 anos, enquanto 11 blancos governaram por outros 34 anos. Esta supremacia entrou em xeque com uma novidade na eleição de 1971, uma coalizão de esquerda conhecida como Frente Ampla.
Apoiada até pela guerrilha dos Tupamaros, a ameaça no quintal vizinho assustou o grande irmão do norte. O Brasil elaborou um plano fulminante – a chamada “Operação 30 Horas” – para invadir e dominar o Uruguai em menos de dois dias, usando as tropas da guarnição mais poderosa do país, o III Exército, com quartel-general em Porto Alegre. O então coronel Dickson Grael, do Estado-Maior da 3ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, de Bagé, confirmou anos depois a visita aos quartéis da fronteira do americano Arthur Moura, adido militar da embaixada em Brasília. “A visita do general fazia parte do acompanhamento que os Estados Unidos faziam da conturbada situação no Uruguai”, relatou Grael.
A invasão foi cancelada porque, afinal, a Frente Ampla não venceu. Ganhou o colorado Bordaberry, numa eleição que os adversários blancos acusaram de fraudulenta. A suspeita seria confirmada um mês depois, em dezembro de 1971, na distante Bermuda, num encontro entre o presidente americano e o primeiro-ministro inglês. “Os brasileiros ajudaram a manipular a eleição no Uruguai”, disse Richard Nixon a Edward Heath, conforme um telegrama secreto divulgado em 2002 pelo National Security Archive (NSA), da Universidade George Washington.
A soberania do Uruguai era um dos temas centrais da conversa de 135 minutos que o general Garrastazú Médici, chefe da fase mais sangrenta da ditadura brasileira, teve com Nixon em Washington, na primeira semana de dezembro, quando a eleição de novembro de 1971 no Uruguai ainda não tinha vencedor declarado. Para a conversa presidencial, Nixon trouxe de Paris o adido militar Vernon Walters, o general que em 1964 articulou pela CIA a conspiração que derrubou Goulart. Três meses após o encontro Nixon-Médici, Walter assumiu como vice-diretor da CIA.
O cinismo da conversa entre os governantes dos dois países mais importantes do continente está marcado pela conversa gravada que o secretário de Estado William Rogers teve com Nixon, no final da tarde de 7 de dezembro, pouco após seu encontro com o general brasileiro:
Rogers – Eu tive um momento muito bom com ele na hora do almoço e ele…
Nixon – Ele é um bom companheiro, não é?
Rogers – Ele é. Deus, estou feliz que ele está do nosso lado.
Nixon – Forte e, uh, você sabe… (risos)… você sabe, eu gostaria que ele [Médici]estivesse governando todo o continente [sul-americano].
Rogers – Eu também. Temos que ajudar a Bolívia. Ele está preocupado. Temos que ter certeza de que…
Nixon – Aliás, a coisa uruguaia, ele [Médici]aparentemente ajudou um bocado lá…
Bordaberry, o homem ajudado por Médici, segundo a confidência de Nixon, assumiu o poder. Um mês e meio após a posse adotou o Estado de Guerra de Guerra Interno, que suspendia garantias constitucionais, o direito de reunião e a inviolabilidade de domicílio. Uma receita que a ditadura brasileira usava desde 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5, o mais violento dos instrumentos criados pela ditadura de instalada em 1º de abril de 1964. O primeiro Ato Institucional, de 9 de abril, não tinha número, mas começou cassando os direitos políticos de João Goulart e Leonel Brizola, que buscaram exílio no Uruguai ainda democrático.
Só ganhou numeração a partir do segundo – e não parou mais. Foram 17 AI até 1969 (um a cada quatro meses) e 104 Atos Complementares (um e meio por mês) que usurpavam o poder legislativo do Congresso fechado pelos militares. A fórmula autoritária foi copiada pelos militares uruguaios a partir de junho de 1976, com o AI-1 que suspendia as eleições presidenciais previstas para aquele ano. Bordaberry foi deposto e o AI-2 inventou o Conselho Supremo da Nação, composto por cinco civis bem comportados e pelos 21 disciplinados oficiais-generais que agora reinavam, soberanos, sobre o país.
Ironia da história
Conhecido orgulhosamente como a “Suíça da América Latina”, o país se tornou o Uruguai do mundo. Embalado pelos ventos que sopravam de Washington e Brasília, o regime de Montevidéu bateu recordes negativos na economia, no desemprego, na cultura, nos direitos humanos. Era, segundo a ONU, o país com maior índice de presos políticos no mundo, um encarcerado para cada 600 habitantes. Na proporção com a população do Brasil, seria 1,5 milhão de brasileiros presos, multidão suficiente para lotar então 15 estádios do Maracanã. Os uruguaios que não estavam presos preferiam o exterior, expulsos pela crise econômica, pelo medo da repressão, pela falta de perspectivas. Meio milhão de pessoas, 1/6 da população uruguaia, foi forçado a uma diáspora que os levou para a Argentina, Austrália, Canadá, Europa.
O país de alto nível cultural, de repente, tornou-se calado, reprimido, medíocre. A censura, como no Brasil, atacou a imprensa, o teatro, as artes, a alma popular. Nos primeiros quatro meses do golpe, 23 órgãos de imprensa foram fechados, na capital e no interior. No ano seguinte, piorou: 96 redações fechadas temporariamente, uma a cada três dias. O último fechamento de 1975, na véspera do Ano Novo, é simbólico: os militares empastelaram a revista do padre jesuíta Andrés Assandri, chamada Perspectiva de Diálogo. Nada mais previsível: perspectivas não havia; diálogo, muito menos.
Mário Benedetti e Juan Carlos Onetti estavam banidos das livrarias. O grupo de teatro El Galpón foi dissolvido. Alfredo Zitarrosa, Daniel Viglietti e Los Olimareños estavam vetados. Jornais brasileiros e argentinos eram apreendidos com as notícias que a imprensa local não podia dar. Um jogo da seleção de futebol da União Soviética, contratado e anunciado em 1976, foi cancelado em 1977, e nenhum jornal pode informar sobre o cancelamento. Sete tangos de Carlos Gardel foram proibidos, especialmente o subversivo Al pie de la Santa Cruz, que trazia este verso muy peligroso: “Hoy se le negó el aumento al pobre obrero/ que le pidió un pedazo de pan”.
Até as palavras da meteorologia assustavam a ditadura. O locutor da rádio já não podia falar sobre o inverno mais rigoroso no país. A censura proibia a palavra correta sobre a previsão do tempo – “mucho frio”–, ignorando a inclemência da estação e reafirmando a impenitência dos quartéis. Os militares mandavam dizer assim:
– Hace frio, pero no mucho. Hay países que están peores…
Como toda a ditadura, a uruguaia perdia o senso da realidade e a noção do ridículo. Num dia qualquer de 1977, um preso encapuzado numa cela do Comando Geral do Exército, em Montevidéu, ouviu uma blasfêmia de um jovem estudante, pendurado ao seu lado, também sob tortura.
– Me cago en Dios!
O que mais impressionou o jornalista Rodolfo Porly Corbo, 31 anos, que ouviu o lamento não foi o desabafo angustiado do jovem, mas a indignada reação do militar que comandava a tortura:
– Respete las ideas ajenas, mocito!
Quarenta anos atrás, o Uruguai mergulhou fundo no poço de horrores de uma das ditaduras mais terríveis do Cone Sul sangrento da década de 1970. E o Brasil foi cúmplice e parceiro dessa jornada de violência e morte.
Mas, como o Brasil, o Uruguai emergiu para a luz da democracia e da liberdade. Ambos são agora presididos, pela ironia da história, por ex-guerrilheiros que foram presos e torturados.
Uruguaios e brasileiros, após o horror, já podem proclamar:
– Acá se respetan las ideas ajenas, mocito!
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Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor do livro Operação Condor: O Sequestro dos Uruguaios, relato da ação da repressão uruguaia em Porto Alegre contra os refugiados Universindo Rodríguez, Lilián Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca