Como o Tribunal da Inquisição, sediado em Lisboa, conseguiu se fazer presente até mesmo nos confins do Brasil colonial, coletando denúncias, prendendo pessoas e levando-as para serem julgadas em Portugal? Com quais instituições a Inquisição se relacionava? Que setores sociais cooperaram com ela? Essas foram as perguntas que inspiraram a tese “Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social”, apresentada por Aldair Carlos Rodrigues no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de doutor.
O estudo – orientado por Laura de Mello e Souza, como parte do Projeto Temático “Dimensões do Império Português” – recebeu o Prêmio Capes 2013 (área de História) e o Grande Prêmio Capes de Tese Darcy Ribeiro (que abrange as grandes áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes e Multidisciplinar-Ensino e Interdisciplinar), oferecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação (MEC).
“A principal conclusão foi que a Inquisição conseguiu atuar no Brasil porque possuía mecanismos eficazes e oferecia cargos que atraíam as elites da sociedade colonial. O tribunal não tinha uma sede aqui, mas sua atuação se ramificava por meio de uma rede de agentes criada na colônia”, disse Rodrigues à Agência FAPESP.
Segundo o pesquisador, os atrativos para a formação dessa rede eram a distinção social e os privilégios que seu membros passavam a ter. “Não era fácil se tornar um quadro da Inquisição, porque essa instituição possuía vários dispositivos bastante excludentes. Então, quem conseguia passar pelos filtros, adquiria um status social destacado”, afirmou.
Para os integrantes das elites da época, tanto na Península Ibérica quanto nas colônias da América, era muito importante provar a “limpeza de sangue”. Isto é, provar que não se pertencia às “raças” consideradas “infectas” (judeus, muçulmanos, negros, indígenas).
E a Inquisição era tida como a instituição mais rigorosa na apuração da “limpeza de sangue”. Entrar para seus quadros equivalia a apresentar a toda a sociedade um atestado de “sangue puro”. “Isso tornava o pertencimento à Inquisição muito atraente. Por meio do ‘estatuto de limpeza de sangue’, a Inquisição desempenhou um papel importantíssimo no processo de formação e estruturação da elite social do Brasil durante o século XVIII”, informou Rodrigues.
Ele considera esta a grande novidade de seu estudo. “A maioria das pesquisas já feitas sobre a Inquisição teve por foco as vítimas. A minha pesquisa procurou investigar esse outro aspecto, o da inserção social da Inquisição, do seu papel na estruturação da sociedade brasileira, na constituição das hierarquias. São duas abordagens complementares. Estudar a Inquisição sob o ângulo da inserção social me permitiu entender como essa instituição pôde durar tanto tempo. A Inquisição portuguesa foi estabelecida em 1536 e só foi abolida em 1821, no contexto da chamada Revolução Liberal do Porto”, disse.
O início da atuação da Inquisição na Península Ibérica pode ser mais bem compreendido quando se considera que os Estados que estavam se estruturando nesse período se fundamentavam na unidade da fé. Constituídos no contexto da luta de cristãos contra muçulmanos, identificavam-se profundamente com a fé católica. A sobrevivência de outras confissões religiosas no mesmo território punha em xeque essa unidade da fé, e, por extensão, a unidade política.
“A criação de instituições encarregadas da repressão violenta às dissidências religiosas, como foram os tribunais da Inquisição espanhola e portuguesa, se inseriram nesse contexto”, explicou Rodrigues.
Já a sobrevivência desses mesmos tribunais e de seus aparatos em épocas tão tardias quanto a primeira metade do século XIX – e não apenas nas metrópoles ibéricas, mas também nas colônias americanas – exige outro tipo de explicação. E, neste caso, o atrativo social decorrente da aplicação dos “estatutos de limpeza de sangue” e uma série de privilégios, como a isenção fiscal, ajudam a entender como essa instituição pode estruturar uma vasta rede de agentes que perpetuou sua atuação.
“A chancela de ‘limpeza de sangue’ que o pertencimento aos quadros da Inquisição proporcionava exercia enorme atração sobre as elites coloniais – tanto aquelas que já estavam consolidadas quanto as emergentes. Para se ter ideia, segundo o meu levantamento para o século XVIII, havia, em toda a colônia, aproximadamente 200 comissários da Inquisição no setor eclesiástico. Na mesma época, o número de agentes civis ligados à instituição chegava a cerca de 2 mil – 457 deles apenas em Minas Gerais”, sublinhou Rodrigues.
Conforme ele, esses agentes civis, chamados de “familiares do Santo Ofício”, eram, principalmente, pessoas que estavam enriquecendo a partir de atividades comerciais, mas ainda não dispunham de status social. Para tais pessoas, entrar para a Inquisição era uma forma rápida e eficaz de ascender socialmente.
“Quando focamos a análise apenas no número de pessoas sentenciadas, esses mecanismos de inserção profunda da Inquisição na trama social tendem a passar despercebidos. Minha pesquisa me fez perceber que essa instituição estava muito mais enraizada na sociedade colonial do que se supunha”, disse.
Rodrigues passou cerca de nove meses estudando a vasta documentação existente no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa – primeiro com o apoio do Instituto Camões (Cátedra Jaime Cortesão), depois com o apoio da FAPESP. Um dos focos desse estudo foi o sistema de comunicação estabelecido entre o Tribunal da Inquisição, em Lisboa, e a rede eclesiástica instalada no Brasil.
“Estudei 1165 registros de correspondência expedida no século XVIII. E pude observar que havia um sistema de comunicação eficiente ligando o Tribunal de Lisboa ao território do Brasil, um sistema profundamente assentado na hierarquia institucional das dioceses”, disse.
“Cada diocese dividia-se em várias comarcas eclesiásticas, que não necessariamente coincidiam com as comarcas civis; as comarcas, por sua vez, dividiam-se em paróquias; as paróquias, em capelas. Quando a Inquisição distribuía um edital impresso com o objetivo de coletar denúncias, esse edital tinha que ser lido no final da missa e, depois, afixado na porta da igreja ou na porta da sacristia, permanecendo ali até a chegada de um novo edital”, detalhou.
No caso do Centro-Sul, os editais chegavam ao Rio de Janeiro. E, dali, eram distribuídos para toda a região. A partir da sede de cada diocese, os impressos chegavam às comarcas eclesiásticas. O “vigário da vara”, que era o principal agente da comarca, os encaminhava às paróquias. E os párocos os repassavam às capelas. Quando o capelão lia o edital, ele tinha que assinar um recibo, informando a data, e em alguns casos até mesmo o horário da leitura do documento.
“Esse mecanismo permitia que, desde Lisboa, a Inquisição tivesse pleno conhecimento de todo o caminho seguido pela correspondência. E, ao longo do tempo, esse fluxo foi sendo otimizado”, afirmou Rodrigues.
Além disso, havia a cooperação da justiça episcopal. Os agentes dos bispos não se encarregavam da perseguição aos “delitos de heresia”, apenas aos “delitos morais”. Mas, quando deparavam com alguma suspeita de heresia nas instâncias do tribunal episcopal, transmitiam a denúncia a Lisboa. E os prelados dispunham de um mecanismo suplementar de imposição da ortodoxia católica: as “visitas diocesanas”.
“O bispo saía em viagem, percorrendo toda a sua diocese, de freguesia em freguesia, e inspecionando o comportamento do clero e da população. Uma de suas funções era conferir as portas das igrejas ou das sacristias para verificar se os editais da Inquisição estavam ali afixados. Caso não estivessem, havia penas para punir o responsável por essa “falta”. Isso permitia que o inquisidor, em Lisboa, tivesse controle até sobre as portas das igrejas do Brasil”, enfatizou Rodrigues.
Esse mecanismo, antes pouco conhecido, foi agora desvelado pela tese de Rodrigues. “Espero que o meu trabalho contribua para a reformulação dos livros didáticos, eliminando a falsa ideia de que a Inquisição praticamente não esteve presente no Brasil”, afirmou.
A publicação em livro, também com apoio da FAPESP, está agendada para fevereiro de 2014.
Grandes prêmios
Além do grande prêmio recebido por Rodrigues, a Capes entregou também outros dois grandes prêmios. Priscila Pini Zenatti, do Programa de Pós-graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), atualmente bolsista de pós-doutorado da FAPESP, recebeu o Grande Prêmio Capes de Tese Zeferino Vaz em Ciências Biológicas, Ciências da Saúde e Ciências Agrárias I e Multidisciplinar – Ciências Ambientais, com a tese “Estudo do IL-7R na Leucemia Linfoide Aguda Pediátrica de Linhagem T”.
Jonas Maziero, do Programa de Pós-graduação em Física da Universidade Federal do ABC (UFABC), recebeu o Grande Prêmio Capes de Tese Álvaro Alberto da Mota e Silva em Engenharias, Ciências Exatas e da Terra e Multidisciplinar – Materiais e Biotecnologia, com a tese “Quantificação, Dinâmica, Testemunho e Aplicações da Discórdia Quântica”.
Mais informações sobre o Grande Prêmio Capes de Tese 2013: www.capes.gov.br/36-noticias/6691-melhores-teses-defendidas-em-2012-sao-premiadas-em-brasilia
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José Tadeu Arantes é repórter da Agência Fapesp