Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Kennedy sugeriu intervir militarmente no Brasil

Exatamente 46 dias antes de ser assassinado com um tiro em Dallas, no Texas, o então presidente norte-americano John F. Kennedy discutiu na Casa Branca uma possível intervenção militar dos Estados Unidos no Brasil para depor o presidente João Goulart, conhecido como Jango.

A informação é do jornalista e colunista dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, Elio Gaspari, que localizou um arquivo de áudio de uma reunião de dois dias ocorrida na Casa Branca – de 7 a 8 de outubro de 1963 – no qual Kennedy debate a situação do Brasil e do Vietnã e questiona o ex-embaixador norte-americano no Brasil Lincoln Gordon sobre a possibilidade da intervenção. “Você vê a situação indo para onde deveria? Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”, questiona o Kennedy.

De acordo com Marcos Vinícius de Freitas, professor de Relações Internacionais da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap), os Estados Unidos consideravam que a influência comunista crescia de maneira desproporcional na região e relata uma conversa que teve com Gordon, que, depois de deixar o serviço diplomático norte-americano, foi reitor da Jonhs Hopkins University.

“Gordon confidenciou que os norte-americanos consideravam que, uma vez sob a esfera comunista, o processo de retorno ao capitalismo era irreversível”, diz Vinícius de Freitas. “As companhias dos Estados Unidos também haviam investido fortemente no Brasil após a segunda II Guerra Mundial e a proposta de Jango de taxação de 10% das remessas de multinacionais ao exterior afrontava esses interesses.”

Segundo Luiz Antônio Dias, professor de História do Brasil da PUC-SP, os Estados Unidos estavam em compasso de espera, aguardando o desenlace dos acontecimentos no país. Ele lembra que o Governo de Kennedy, após não ter conseguido desestabilizar o regime cubano, não poderia permitir o surgimento de um novo polo irradiador comunista. Muito menos no maior país da América do Sul. “Na sequência, o que aconteceu foi que os acontecimentos internos atenderam aos interesses norte-americanos. Houve apenas apoio logístico e o envio de material bélico, como já se reconhece por uma farta documentação disponível, não uma intervenção militar direta, como no Chile”, diz ele.

O encontro na Casa Branca debatia o contexto brasileiro vivido na época. João Goulart era o vice-presidente de Jânio Quadros que, em 25 de agosto de 1961, renunciou ao cargo. Como Jango estava em uma missão diplomática na China nessa data, os ministros militares tentaram impedir que ele tomasse posse como presidente, pois viam nele uma ameaça ao país por seus vínculos com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e com o Partido Socialista Brasileiro (PSB).

Liderado pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizolla, deu-se início à Campanha da Legalidade, mobilizando o Estado em defesa de Jango. Com a condição de aprovar o regime do parlamentarismo pelo Congresso, Jango toma posse no dia 8 de setembro de 1961, tendo como primeiro-ministro Tancredo Neves.

Os norte-americanos temiam que Jango aprofundasse a plataforma de um governo de esquerda e seguisse os passos do cubano Fidel Castro. A situação no Brasil era complicada. A economia estava fragilizada por uma série de fatores, entre eles, a inflação continuava alta. Os militares faziam uma oposição cada vez mais forte ao Governo Jango, culminando, entre a noite do dia 31 de março de 1964 e primeiro de abril, no golpe militar, que levou Jango a se exilar no Uruguai e ter seus direitos cassados por 10 anos.

Pouco tempo depois, Jango fugiu para a Argentina, onde morreu, segundo a história oficial, vítima de um ataque cardíaco, em 6 de dezembro de 1976. Há suspeitas, porém, que Jango tenha sido envenenado, numa ação da Operação Condor. Por isso, em novembro do ano passado, o corpo do ex-presidente foi exumado, por orientação da Comissão Nacional da Verdade, para investigar o motivo de sua morte. Em dezembro do ano passado, os restos mortais de Jango foram enterrados pela segunda vez, agora em sua cidade natal, São Borja, no Rio Grande do Sul, com honras de chefe de Estado.

O professor Luiz Antônio Dias lembra que, embora ainda não tenha sido encontrada nenhuma evidência material irrefutável, a historiografia nacional reconhece que havia planos de assassinar Jango e que sua morte pode ter sido obra da junta militar brasileira. Um dos testemunhas nesse sentido é do ex-agente do serviço secreto uruguaio Mario Neira Barreto (veja um trecho extraído do documentário Dossiê Jango).

Gravações clandestinas

As gravações dos encontros de outubro de 63 foram postadas na internet pela Biblioteca Kennedy há pelo menos um ano e fazem parte de um conjunto de gravações clandestinas feitas pelo próprio Kennedy de suas reuniões desde 1962, quando deu início à série ao gravar justamente o encontro com Gordon.

Após o embaixador falar sobre eventuais parcerias culturais entre os dois países, Kennedy o interrompe com a pergunta: “Temos alguma decisão imediata para pressioná-lo?”, referindo-se a João Goulart. “O que devemos fazer imediatamente no campo político, nada?”. Gordon, então, revelou dois planos: “Ou Goulart abandona a imagem [de esquerdista] e resolve pacificamente. Ou talvez não tão pacífico, sendo tirado involuntariamente.”

Enquanto isso, para Jango, não havia motivos para desconfiar de Kennedy. No início de 1963, o Brasil acertava com os EUA um empréstimo de cerca de 400 milhões de dólares — dos quais o governo brasileiro só receberia um quinto do valor. Além disso, como prova da boa relação entre ambos os governos, Jango e sua mulher, Maria Thereza, haviam sido recebidos por John e Jacqueline Kennedy na Casa Branca.

No golpe militar de 1964, a intervenção militar norte-americana acabou sendo desnecessária. A perda de apoio do governo Jango, sua indecisão e a traição de alguns homens de sua confiança, além do fortalecimento da ala militar, contribuíram para a sua deposição.

A informação revelada por Gaspari constará da versão ampliada do livro A Ditadura Envergonhada, uma publicação sobre o regime ditatorial vivido no Brasil entre 1964 e 1985, que será relançada em fevereiro no Brasil.

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Felipe Vanini e Marina Rossi, do El País