Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Comissão da Verdade vai levantar papel de empresários na ditadura

À primeira vista, a fisionomia serena pode disfarçar o ímpeto aguerrido da advogada Rosa Maria Cardoso. De fala calma e argumentos fortes, a mulher que enfrentou tribunais militares na defesa de presos políticos como a presidente Dilma Rousseff durante a ditadura militar é hoje a principal referência na Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em maio de 2012 para resgatar a história da violência praticada pelo Estado entre 1946 e 1988.

Em entrevista ao Valor em que avalia os quase dois anos de trabalho do grupo, Rosa afirma que a CNV vai trabalhar para apontar responsabilidades individuais e mapear o envolvimento de empresários e empresas no golpe e na repressão aos opositores do regime, que classifica como civil-militar. Para Rosa, as manifestações que tomaram as ruas em 2013 são uma amostra do amadurecimento da democracia brasileira, um cenário de demandas por transparência e participação da sociedade com o qual a CNV deve dialogar.

Rosa – que coordenou a CNV entre maio e agosto de 2013 – diz que o relatório final da CNV, a ser apresentado em dezembro, terá recomendações acerca de temas atuais de direitos humanos, como a violência da polícia e a reforma do sistema penitenciário.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

A comissão terá um documento final com recomendação à reinterpretação da Lei da Anistia?

Rosa Cardoso – Com certeza. Todas as comissões da verdade sempre se pronunciaram sobre isso. E mandaremos essa recomendação para o Judiciário e todos os Poderes. Há uma sentença dizendo que as mortes havidas naquele período devem ser punidas. Isso é uma autoanistia que os militares se concederam e ela não pode valer.

A senhora acredita na revogação da lei?

R.C. – Há uma conjuntura favorável. Temos no Ministério Público um procurador da República que se pronunciou favoravelmente [à revisão da Lei da Anistia] e certamente o MP vai entrar com outra ação [contra a lei]. Nós entendemos que o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi acolhido de uma forma fraterna pelo Supremo Tribunal Federal e seu presidente, Joaquim Barbosa. Tudo indica que há uma reavaliação de posições. A ideia fundamental que move as comissões da verdade é a constatação de que houve a barbárie e nós não queremos que ela se repita.

Apontar os nomes de torturadores será uma prioridade?

R.C. – Sim. Nós decidimos que vamos contar uma história das graves violações no período, desde 1946 até 1988.

A CNV é criticada por não dar atenção a alguns casos…

R.C. – Nosso mandato é claro. Entendemos que temos que contar a história da violência praticada por agentes do Estado. Esta questão não é bem compreendida. A imprensa indica como uma espécie de fracasso que a comissão não se ocupasse de todas as violações de direitos ocorridas na ditadura, mas não é o caso. Nós não temos que nos ocupar da censura, do medo, das restrições à manifestação de expressão. Isso é importante para contextualizar, mas o que temos que contar é uma história da violência do Estado, de seus agentes e das graves violações de direitos humanos que implicam em crimes contra a humanidade, crimes imprescritíveis. E contando quem é responsável pelos fatos. Se estes serão processados criminalmente, isso é uma questão que o Judiciário vai decidir. E devemos também nos manifestar se somos favoráveis à reinterpretação da Lei da Anistia. Há quatro integrantes da comissão favoráveis: o Paulo Sérgio Pinheiro, o Pedro Dallari, a Maria Rita Kehl e eu.

A proliferação de comissões da verdade no Brasil é algo inédito. É consequência da repercussão do trabalho da CNV?

R.C. – Vimos a formação de mais de cem Comissões da Verdade e 150 Comitês de Memória, Verdade e Justiça. Se eles estão se formando no Brasil inteiro, é porque há sensibilização [da sociedade]. Isso excede o interesse das próprias vítimas. Uma comissão da verdade existe para expandir a democracia, para fazer com que não tenhamos uma democracia administrada, mas efetivamente ampla e sem os grilhões dos aparelhos de segurança do passado. Ainda hoje no Brasil temos medo dos militares. Quando nossos telefones não funcionam achamos que estamos sendo vigiados. Esse medo não acabou.

Como a senhora vê as manifestações que tomaram as ruas do Brasil em 2013?

R.C. – Sou uma pessoa otimista politicamente. Acho que as manifestações vão se repetir e devem se repetir. Elas fazem parte de um fenômeno internacional que marca a insuficiência da representação. Acho que a articulação disso com a campanha [eleitoral de 2014] vai melhorar o nível da discussão, levar a posições mais claras dos políticos e clareza na prestação de contas. Acho que teremos uma campanha mais avançada quanto à questão da democracia. A reforma política está se prenunciando, como outras reformas como a melhoria da prestação de serviços e a reforma do sistema penitenciário. Não queremos só um jogo de partidos, queremos condições de sobrevivência mais dignas. Por isso a fúria nas ruas. Essas manifestações são uma forma de expandir a democracia, uma forma de reivindicar dos governos maior atenção às questões sociais. Mas também são uma forma de dizer que a população não se sente suficientemente representada pelos partidos políticos. Nós não concordamos é que esses movimentos desaguem em violência e passem a ser policiados de forma que se restrinja o direito de manifestação das pessoas. Não estou de acordo com a violência dos mascarados.

E como as manifestações influenciam no trabalho da CNV?

R.C. – A grande lição que tiro disso é que uma Comissão da Verdade em 2013 e 2014 tem que ser muito mais democrática que comissões que existiram no século passado ou no começo do século XXI. Quero dizer que embora comissões como a da Argentina ou Chile não tenham indicado os autores [de crimes contra os direitos humanos], o que as ruas estão nos indicando é uma demanda por transparência. Não dá mais para fazer as coisas de uma forma secreta. Isso passou.

O documento final da CNV vai incluir críticas a práticas atuais de violência do Estado, à repressão policial?

R.C. – Sim. O relatório não será apenas uma narrativa das violações – essas são crimes e crimes de lesa humanidade, imprescritíveis –, mas também um conjunto de recomendações. Elas vão focar sobretudo os Poderes do Estado brasileiro. Vamos falar do Poder Judiciário – que durante a ditadura teve uma atuação submissão ao regime –, vamos nos pronunciar muito especificamente sobre as Forças Armadas, mas também sobre o poder civil que se integrou com os militares em uma ditadura que chamamos de civil-militar. Vamos falar também sobre os órgãos de segurança e as polícias de hoje, sobre a Polícia Militar. Isso vai ser importante não apenas porque falaremos sobre problemas que a população sofre como a atuação da PM, mas também porque vamos discutir essas recomendações com a sociedade civil.

E as investigações sobre participação civil no golpe?

R.C. – Esperamos em três meses dar prioridade a esse tema. No fim de março queremos fazer a primeira comunicação à mídia sobre isto. Os sindicalistas têm insistido muito que isso é prioridade pra eles porque é um passado que mantém relação com o presente. A legislação sobre isso foi sendo aprimorada desde a Segunda guerra Mundial, com o Tribunal de Nuremberg. E em 2003 e 2006 documentos produzidos pela ONU dizem que as empresas podem ser responsabilizadas se tiverem uma cumplicidade com esses regimes. Houve casos no Brasil, não somente na Operação Bandeirantes. Predominantemente as empresas contribuíram para o golpe. Mas contribuíram depois também no processo repressivo. Aí houve uma cumplicidade que implica em responsabilidade criminal. Elas forneceram dinheiro, armas, carros e gasolina. Essa cumplicidade em ações repressivas, o direito internacional já nos diz que é passível de punição. Mas houve também outras formas de cumplicidade. Empresas contribuíram mandando listas, fazendo delações de funcionários que deveriam ser presos para serem submetidos a violações de direitos. O grupo de sindicalistas está tentando encontrar nomes a serem responsabilizados. Se não houver nomes, eles vão indicar as empresa que participaram.

A presidente Dilma Rousseff busca uma agenda positiva com o empresariado. Há possibilidade de interferência do governo nos rumos da CNV?

R.C. – Creio que a presidente Dilma não vai interferir. Aliás, não houve até agora nenhuma intervenção. Ela jamais me convidou para conversar sobre a comissão. Desde que estou na comissão, exatamente para evitar qualquer crítica solerte, malévola, não temos convivido. Sempre digo que ela compôs uma comissão eclética e nos deu liberdade para discutirmos e chegarmos à posição mais adequada e compatível com nossa atribuição. É possível que intimamente tenha suas preferências, mas ela não toma partido.

O trabalho da CNV pode ser influenciado pela eleição?

R.C. – Acho possível que a plataforma de alguns partidos inclua a divulgação de temas relacionados à CNV. Nesse aspecto, não vejo como possa haver um conflito entre as eleições e trabalho. Acho interessante essa convivência com um ano eleitoral.

Quais as prioridades para 2014?

R.C. – Começamos o ano debatendo o relatório final com uma grande reunião amanhã. Depois vamos marcar uma discussão com as comissões estaduais para definir como inserir suas contribuições. Outra linha de trabalho serão as audiências com os empresários, o elemento civil do regime.

As discussões entre membros da CNV foram superadas?

R.C. – Não sei se foram superadas, mas foram claramente substituídas por outras. Hoje, a questão que nos mobiliza é a elaboração do relatório final.

Dar visibilidade ao trabalho da CNV é um objetivo este ano?

R.C. – É uma preocupação fundamental. O trabalho da CNV é um trabalho público. É um desafio cumprir nossas atribuições dialogando com a sociedade. A questão é esta, não estamos falando somente do que aconteceu com as vítimas, mas falando de direitos humanos.