Olhando da perspectiva do tempo, é pena que o brasileiro não seja mais cordial, como antes afirmavam os cientistas sociais. Cordialidade que, mais cedo ou mais tarde, brotará de suas raízes para constituir um perfil nacional do qual estamos nostálgicos, como o doutor Fausto naquele monólogo inicial, que “chorava continuamente os bens que não perdeu”.
Como Fausto, também, João Goulart hesitava em vender o resto do seu mandato aos Mefistófeles que “construíam ideias distantes da realidade social”. A citação não é de Goethe, mas de Abelardo Jurema. E o antigo ministro da Justiça ainda acrescentou em suas recordações daqueles “terribilis dies” que antecederam o movimento militar de 1964: “A responsabilidade maior pelas distorções de Goulart cabe aos incríveis teóricos de seu governo”.
Em praça pública
De início, a contradição fundamental de Jango, segundo um de seus defensores mais sinceros, foi “a tentativa de restabelecer o cálculo econômico e, portanto, manter a continuidade da acumulação capitalista, sem penalizar os trabalhadores”, medida que “liquidaria não apenas a política econômico-financeira de Celso Furtado e San Tiago Dantas, mas o próprio regime democrático”.
Trocando Dantas e Furtado por assessores passionais de diversas origens, pesos e finalidades, Jango foi pressionado a obter um pacto isolado com a sociedade de forma direta, extraconstitucional. Seu chefe da Casa Militar, general Assis Brasil, garantia que “nunca um governante dispusera de tamanho dispositivo de força”. Apoiado nessa força (a única força realmente oculta que ficou ocultada em nossa história), Jango aceitou a sugestão de promover comícios-monstros pelo Brasil afora, despachando (ou legislando) em praça pública, dialogando com o povo os grandes temas nacionais que não conseguia conversar com a classe política.
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Carlos Heitor Cony é colunista da Folha de S.Paulo