Na literatura sobre a ditadura militar, convencionou-se chamar o Ato Institucional nº 5, de 1968, de “o golpe dentro do golpe”. Nessa concepção, o golpe original é o de 1964, quando os militares expulsaram João Goulart. E o golpe “de dentro” é o endurecimento do regime, com o fechamento do Congresso. Ambos os golpes são principalmente contra a sociedade.
Dessa forma, o título “A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe: 1964-1969”, livro que o experiente jornalista Carlos Chagas está lançando, pode induzir ao erro.
Só após algumas dezenas de páginas percebe-se que os golpes aos quais ele se refere não são aqueles perpetrados contra a sociedade, mas os de militares contra militares: as sabotagens internas, as manobras desleais, as traições.
Chagas era um jovem repórter de “O Globo” no início dos anos 60, numa época em que o Brasil era bem diferente. Ele lembra como era fácil entrevistar Tancredo Neves em 1962, quando o então primeiro-ministro vivia no Flamengo: “Bastava cumprimentar o porteiro, subir ao 6º andar, apresentar-me para a empregada doméstica e aguardar na varanda que o primeiro-ministro aparecesse”.
Alguns anos depois, Chagas aceitou um convite de Costa e Silva e tornou-se secretário de Imprensa da Presidência –cargo equivalente ao que sua filha Helena Chagas ocupava até janeiro no ministério de Dilma Rousseff.
Em algumas passagens, o livro parece um acerto de contas de Chagas com aquela época, como se tentasse justificar seu ingresso no governo no instante de maior endurecimento. Ele afirma que só aceitou o convite porque estava convencido de que Costa e Silva patrocinaria o início de um processo de descompressão. Hoje é fácil perceber que não foi assim. Mas na época lideranças da oposição também faziam essa avaliação.
Para o jornalista, o maior de todos os golpes internos foi a solução que os militares encontraram em 1969 para não entregar o poder ao vice Pedro Aleixo, um civil, após o afastamento de Costa e Silva por motivos de saúde. No lugar de Aleixo, quem assumiu foi uma Junta Militar.
Fiel ao ex-chefe, Chagas garante que, no instante em que foi afastado, Costa e Silva estava prestes a revogar o AI-5.
Outra impressão equivocada sugerida pelo título é sobre o período abordado no livro. De suas quase 500 páginas, mais de 400 tratam do biênio 1964-65. Os quatro anos seguintes ficam espremidos nas páginas finais.
Feitas essas ressalvas, “A Ditadura…” é uma obra fácil e interessante de ser lida. Ele guia sua narrativa a partir do noticiário da imprensa diária, reproduzindo e contando bastidores das reportagens feitas no calor dos eventos.
Em várias passagens, ele coloca o ex-patrão Roberto Marinho e um de seus irmãos, Rogério Marinho, em situação desconfortável, ora descrevendo uma capa de “O Globo” após o golpe, ora resgatando reportagens de sua autoria censuradas por Rogério.
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Ricardo Mendonça, da Folha de S.Paulo