Lançados entre 2002 e 2004, os quatro livros do jornalista Elio Gaspari que retratavam a ditadura “envergonhada”, “escancarada”, “derrotada” e “encurralada” surgiram de uma pergunta que o perseguia pelo menos desde os anos 1980: por que os generais Ernesto Geisel, chefe do Gabinete Militar de Castello Branco entre 1964 e 1967 e presidente de 1974 a 1979, e Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) em 1964 e mais tarde chefe do Gabinete Civil de Geisel, tendo ajudado a erguer o regime, decidiram desmontá-lo, ainda que de forma “lenta, gradativa e segura”?
Nas duas décadas em que se dedicou a responder a essa pergunta, Gaspari apoiou-se num amplo e valioso conjunto de fontes. Além de um acervo pessoal de entrevistas e documentos, recebeu de Golbery, em 1985, 25 caixas com mais de 5 mil papéis que estavam mofando na garagem do oficial reformado. Colheu dezenas de depoimentos de Geisel, em conversas semanais de 90 minutos, gravadas entre 1994 e 1996. E teve acesso aos diários de seu amigo Heitor Aquino Ferreira, secretário de Golbery entre 1964 e 1967, e de Geisel entre 1971 e 1979. A partir desse material que descortinava os bastidores do poder, compilou uma base de pesquisa de 15 mil itens, e com eles construiu a mais minuciosa crônica do regime militar.
Colunista do Globo e da “Folha de S.Paulo”, Gaspari lança agora uma nova edição, pela Intrínseca, dessa série de livros. Ela será concluída pelo quinto volume anunciado há tempos, e previsto para ficar pronto em dois anos, sobre a reta final do governo Geisel e as “três explosões” do mandato de João Baptista Figueiredo, “a da economia, a do Riocentro e da campanha das Diretas Já”, anuncia o autor na introdução. Os quatro primeiros títulos chegam às livrarias dia 19, em versões atualizadas com dados e imagens garimpados nos últimos dez anos. O lançamento será marcado por um debate às 19h30m, na Travessa do Leblon, com os historiadores Daniel Aarão Reis e Marly Vianna e mediação de Livia de Almeida, editora da coleção.
No mesmo dia serão lançadas as versões em e-book das obras, que tornam ainda mais abrangente a narrativa de Gaspari. Enriquecidas por centenas de documentos, áudios e vídeos, as edições digitais permitem que o leitor vasculhe parte dos arquivos do autor. Explorando novas tecnologias, oferecem uma experiência de leitura inédita no Brasil – complementada pelo site www.arquivosdaditadura.com.br, que vem sendo alimentado com material de Gaspari desde o início do ano e receberá 50 novos documentos na próxima semana.
Os e-books trazem itens que não estavam nas edições originais. Os dois primeiros volumes, que cobrem o período que vai do golpe de 1964 até o fim da Guerrilha do Araguaia, em 1974, reúnem papéis que ilustram o recrudescimento da repressão e das torturas, o mergulho de parte da esquerda na luta armada, as intrigas palacianas requentadas a cada sucessão presidencial.
A edição digital de “A ditadura envergonhada”, por exemplo, traz um manuscrito em que Geisel comenta uma inspeção feita em quartéis do Rio, São Paulo e Nordeste em setembro de 1964, a mando de Castello Branco. Dizia ter encontrado indícios de “maus-tratos, sevícias e torturas” cometidos na “fase inicial da Revolução”, mas que “tinham cessado aquelas anormalidades de caráter arbitrário e desumano”. No mesmo e-book, o capítulo sobre a reunião convocada pelo presidente Costa e Silva em dezembro de 1968 para definir o AI-5, chamada de “missa negra” por Gaspari, ganha áudios com intervenções de autoridades presentes. A conhecida frase do então ministro do Trabalho Jarbas Passarinho – “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência” – está na versão impressa, mas torna-se mais emblemática ouvindo-se o tom decidido com que foi pronunciada.
Já na versão digital de “A ditadura escancarada” é possível consultar as 14 folhas datilografadas do documento conhecido como “Quedograma”, no qual militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN) buscavam, em 1973, reconstituir as prisões e mortes de seus integrantes (que se referiam a elas como “quedas”). Nela estão também 19 páginas de um estudo de 1975 do Centro de Informações do Exército (CIE) sobre os rumos da “Revolução de 1964”. De forma elíptica, refere-se às torturas e demais abusos cometidos pelo regime como “ações que qualquer justiça do mundo qualificaria de crime”.
O terceiro e o quarto livros focam no governo Geisel, acompanhando a escolha de seu nome por Médici, a sucessão em meio à crise internacional do petróleo e à instabilidade do “milagre” econômico, e seu comportamento diante da escalada de truculência nos “porões”. “A ditadura derrotada” revelou o diálogo de 1974 em que Geisel, informado por seu futuro ministro do Exército Dale Coutinho (que morreu pouco depois de assumir o cargo) sobre torturas a presos políticos, disse que “esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”. “A ditadura encurralada” reconstituiu a demissão, em 1977, do substituto de Dale no cargo, Sylvio Frota, representante da “linha dura” e adversário da “distensão” promovida pelo governo.
Centrados nas trajetórias de Golbery e Geisel, esses dois volumes fazem mais uso dos arquivos do fundador do SNI e das entrevistas com o ex-presidente. Golbery aparece como conspirador inveterado e autor de discursos e manifestos empolados, conhecido por mil apelidos entre amigos e detratores (Feiticeiro, Bruxo, Satã, Satânico Dr. Go, Corcunda, Corca, Hiena Caolha). Sua “medonha caligrafia” está estampada em vários manuscritos nos e-books. Geisel é retratado como militar de mentalidade autoritária, que desdenhava “esse negócio de povo”, mas rejeitava ainda mais a anarquia nas Forças Armadas. Nas edições digitais, sua voz surge várias vezes, como numa declaração sobre o caráter “secundário” do “espírito democrático”.
As novas edições – disponíveis para iPad, Kindle, Kindle Fire, Kobo e tablets com sistema Android – mobilizaram uma equipe de 20 pessoas, da pesquisa à digitalização e desenvolvimento de ferramentas que facilitam a navegação pelo texto. As mais de 2 mil notas de rodapé foram transformadas em janelas que abrem e fecham com um toque. Links permitem que se retorne ao ponto de leitura depois de acessar documentos, áudios e vídeos.
Tudo ao gosto de Gaspari, fã de primeira hora dos e-books. Recentemente, doou grande parte da “Biblioteca Malan”, coleção de 6 mil volumes que mantinha em um apartamento em São Paulo (o nome era homenagem irônica ao ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso que, sustentando a paridade entre real e dólar, permitiu que o autor montasse o acervo). Guardou apenas os 500 títulos sobre a ditadura que consultou para suas obras. Novas aquisições vão direto para leitores eletrônicos, que, em coluna de 2009 no GLOBO, ele já saudava como um tipo de “engenhoca que fará a alegria de quem quer atravessar a fronteira dos meios de comunicação impressos”.
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Elio Gaspari atualiza obras sobre ditadura com menções a Dilma e CNV
Além dos avanços tecnológicos, as novas edições do ciclo de Elio Gaspari sobre a ditadura, publicadas pela Intrínseca, foram atualizadas com o que o autor considerou as descobertas mais relevantes sobre o tema nos últimos dez anos. Há apenas uma menção direta à Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012. É uma frase do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI em São Paulo de 1970 a 1974, em depoimento de maio de 2013: “Quem devia estar sentado aqui é o Exército brasileiro, não eu”. A declaração aparece em “A ditadura escancarada” como exemplo do rancor da “linha dura” contra oficiais que, depois do regime, fingiram não saber das torturas nos “porões”.
Uma explicação possível para a referência solitária está numa coluna de Gaspari publicada no GLOBO em dezembro. Ele escreveu que as Comissões da Verdade, ao considerarem hipóteses como a de que os ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek teriam sido mortos, “flertam perigosamente com a síndrome de Virgínia Lane” (a Vedete do Brasil, que morreu essa semana, dizia ter testemunhado o assassinato de Getúlio Vargas porque estava na cama com ele).
No mesmo texto, porém, Gaspari disse que a CNV produziu ao menos uma “revelação espetacular”: a prova de que o deputado Rubens Paiva, “desaparecido” depois de ser preso em casa, em 1971, esteve no DOI do Rio em janeiro daquele ano. “Enquanto os comandantes militares não reconhecerem que se praticaram torturas nas suas masmorras, essas comissões podem fazer bem”, escreveu.
“A ditadura envergonhada” e “A ditadura escancarada” ganharam menções à presidente Dilma Rousseff, que, na época das primeiras edições, era a pouco conhecida ministra de Minas e Energia de Lula com um passado na luta armada. A edição digital do segundo título traz um documento de 1969 que prova que o Exército sabia o codinome usado por ela (Wanda) quando militava no Comando de Libertação Nacional (Colina). Gaspari espalhou pelos dois primeiros livros outras referências à militância de Dilma no Colina e na VAR-Palmares. Narrou também a história de uma militante com trajetória parecida com a da presidente, mas que terminou assassinada.
JFK cogitou intervenção no Brasil
O primeiro volume ganhou ainda informações da ata de uma reunião do Conselho de Segurança Nacional em 11 de julho de 1968, divulgada em 2009. O documento mostra o presidente Costa e Silva comandando uma “sessão consultiva e vaga”, na qual por um lado tateava-se decretar estado de sítio ou um novo Ato para conter a “contrarrevolução”, e por outro pregava-se respeito ao “livrinho, (…) a Constituição”. Em dezembro foi editado o AI-5.
“A ditadura encurralada” teve o capítulo sobre o diálogo entre o presidente Geisel e o ministro do Exército Sylvio Frota, em 1975, depois da morte do jornalista Vladimir Herzog no DOI-CODI, modificado desde o título, que passou a ser “Merda! Merda!”. Em seu livro de memórias lançado em 2006, “Ideais traídos”, Frota diz que Geisel o recebeu em seu gabinete batendo na mesa e vociferando essa expressão. Gaspari incluiu em seu relato sobre o encontro a versão do general demitido em 1977.
O jornalista fez menções a mais livros lançados desde 2004, como, entre outros, “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mário Magalhães, e “Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia”, de Leonencio Nossa, lançados pela Companhia das Letras.
Alguns documentos já haviam sido adiantados no site www.arquivosdaditadura.com.br. O primeiro foi o áudio de uma reunião do presidente americano John Kennedy com a cúpula de seu governo, em 7 e 8 de outubro de 1963, na qual se discutiu a possibilidade de depor João Goulart. Na presença do embaixador dos EUA no Brasil Lincoln Gordon, Kennedy pergunta se em alguma situação seria “aconselhável que façamos uma intervenção militar” no país. Gaspari pretende alimentar o site com ao menos um documento novo por semana. (G.F.)
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>> Veja novos documentos dos livros de Elio Gaspari sobre a ditadura
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Guilherme Freitas, doGlobo