Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ditadura reloaded

O cinquentenário do golpe, daqui a um mês e pouco, não enseja comemoração, muito menos contrição. Os nostálgicos da patriótica coronhada ficam vexados em festejar em alto e bom som o terror imposto pela ditadura. Já os legatários dos caídos em 1964 não têm sequer uma data para celebrar. Exaltar o dia da anistia, tramoia cívica para evitar o julgamento de torturadores e dos generais que os comandavam? A tarde em que um colégio eleitoral bastardo ungiu Tancredo, o Audaz, presidente? A noite mal-assombrada em que empossaram Sarney, logo ele, que batia o bumbo na banda verde-oliva para abafar o berro dos que tinham as unhas arrancadas?

A Comissão da Verdade poderia aclarar alguns dos assassinatos da tirania. Ela teve quase dois anos para trabalhar no assunto e, como todos esperavam, fracassou. Nas subcomissões que brotaram aqui e acolá, criaram-se cargos às dezenas, teimou-se em revisitar a morte de JK e Jango, descobriram-se documentos que já eram públicos. A Comissão da Verdade fez muita coisa, menos o relatório final que deveria ter publicado em dezembro. Ele foi adiado para o fim do ano – para bem depois do cinquentenário, depois da Copa, depois das eleições presidenciais, depois de depois. Aguardemos sentados.

É de se antever então, na data magna da nacionalidade, os hosanas de praxe à democracia. O silêncio cínico dos chefes militares. O crocitar dos corvos no Congresso. O cicio de saudade de um ou outro general de pijama. Logo se mudará de conversa, de modo a que a caserna e o porão sejam esquecidos. Não é de bom tom lembrar, como fez há pouco o professor Daniel Aarão Reis, que Ulysses Guimarães liderou a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Ou que D. Paulo Evaristo Arns, bispo de Petrópolis, foi para a estrada e benzeu as tropas do general Mourão Filho (“sou uma vaca fardada”, ele dizia), que iam ao Rio depor João Goulart.

O insuportável mau cheiro da memória só não esvaneceu devido aos insatisfeitos de sempre. Foram eles que colheram os depoimentos de figurões do regime para a Fundação Getulio Vargas. Retiraram centenas de processos do Superior Tribunal Militar e, na clandestinidade, puseram de pé o projeto Brasil Nunca Mais. Escreveram livros de memória e deram testemunho. Houve e há gente empenhada em estudar o acontecido, pensar o que se passou e continua vivo no presente, aprender com o passado para evitar a sua repetição neurótica.

Boa nova

Elio Gaspari, por exemplo. Foi publicada agora a segunda edição, pela Intrínseca, dos seus quatro volumes sobre a ditadura: a envergonhada, a escancarada, a derrotada e a encurralada. Para quem não leu nada a respeito, Gaspari serve de Virgílio na descida aos infernos. Para quem já conhece a primeira edição, vale reler a segunda porque ela tem novidades. E também porque os 12 anos passados desde o seu lançamento mostram que os livros passaram pelo teste do tempo. Está-se diante de uma grande obra histórica e literária. Cabe a expressão tantas vezes empregada em vão: é um clássico.

Entre as novidades – como o aparecimento de Dilma Rousseff, a guerrilheira “Wanda” – a mais importante diz respeito à participação da Casa Branca no golpe. É transcrita uma conversa, em outubro de 1963, entre John Kennedy e o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. Um mês e meio antes de ser assassinado, o presidente discutiu a sério uma intervenção militar americana para derrubar Goulart. No ano anterior, ele já ordenara a Gordon que fomentasse os conspiradores brasileiros. Seu sucessor, Lyndon Johnson, mandou um porta-aviões para o Brasil e reconheceu o novo governo quando Jango estava no país. Depois, sustentou e armou os novos mandantes.

Mais do que deslustrar a imagem liberal de Kennedy, “A ditadura envergonhada” evidencia a solidez da política imperial. Para Washington, o Brasil era uma ovelha-guia na Guerra Fria, e valia acabar com a democracia para mantê-la no aprisco. O intervencionismo foi compartilhado por democratas e republicanos e pegou a América Latina inteira. Ele se estendeu da deposição de Jacobo Árbenz pela CIA, na Guatemala de meados dos anos 1950, às guerras civis na Nicarágua e em El Salvador, já nos 80.

A exceção, como mostra Gaspari, foi a política externa de Jimmy Carter. Ela se circunscreveu aos direitos humanos, mantendo intocada a proibição de que se fizessem reformas de base na América Latina, os salários aumentassem, se controlasse a remessa de lucros e o latifúndio fosse dividido. A ditadura cumpriu direitinho o diktat.

O Brasil mudou muito desde então, iluminado que foi pela boa nova da moderação. Como não há reformas em vista, a Casa Branca está tranquila. A tranquilidade americana inibe conspirações e mantém as vivandeiras longe dos quartéis.

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Mario Sergio Conti é jornalista