Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

No tempo da ditadura

“Como é que a gente faz hoje quando entra num táxi e o motorista diz que tempos bons eram os da ditadura?”, me perguntou o amigo Nirlando Beirão. Diz que:

No tempo da ditadura, a gente não podia escrever sobre o tempo da ditadura, nem qualificar o regime como uma ditadura. No tempo da ditadura, em vez de uma análise crítica sobre a ditadura, digo regime, neste espaço teria um poema de Camões ou uma receita de bolo, pois seria censurada.

Todo mundo que era contra a ditadura era comunista. Todos se tornaram suspeitos, subversivos em potencial. E muitos que, em 1964, conspiraram com os militares, na missão de impedir que comunistas tomassem o poder, e o Brasil se transformasse numa diabólica ditadura do proletário, perceberam a manobra e foram depois acusados de ligações com comunistas.

No primeiro ato da ditadura, o AI-1 (Ato Institucional Número 1), baixado pela Junta Militar em 9 de abril de 1964, cassaram os opositores dos comunistas, os trabalhistas: João Goulart, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, parte da bancada do PTB, partido fundado por Getúlio Vargas, como Almino Afonso e meu pai, Jânio Quadros, Miguel Arraes, o deputado católico Plínio de Arruda Sampaio, o economista Celso Furtado, o jornalista Samuel Weiner, até o presidente da Petrobrás, marechal Osvino Alves. Nenhum deles era comunista.

Entre outros cassados, estavam membros da corporação que mais perseguições sofreu durante a ditadura: os próprios militares, como o general de brigada Assis Brasil, o chefe do Gabinete Militar Luís Tavares da Cunha Melo e os almirantes Cândido de Aragão e Araújo Suzano. Milhares de oficiais foram expulsos das Forças Armadas durante a ditadura.

Polícia e bandido

Bem antes ditadura, o PCB (Partido Comunista do Brasil) já era ilegal, e seus líderes, eles, sim, comunistas, viviam na clandestinidade. A intenção do Golpe de 64 era impedir o avanço comunista no Brasil e restaurar a democracia em dois anos. Não demorou muito, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, candidato à reeleição, foi cassado acusado de corrupção e colaborar com comunistas.

No primeiro teste eleitoral, em 1965, não foram eleitos os candidatos dos militares em Minas Gerais e Guanabara. Baixaram o AI-2 (Ato Institucional Número Dois). Partidos políticos foram extintos. Poder Judiciário sofreu intervenção. Foram reabertos processos de cassação. Carlos Lacerda, então aliado, dormiu conspirador e acordou subversivo.

O novo partido da situação, Arena, não engrenava. Iria ser derrotado nos Estados mais populosos. A paciência dos militares se esgotou: o AI-3 foi baixado em 1966, determinando que eleição de governadores seria indireta, executada por colégios eleitorais, e prefeitos das capitais, estâncias e cidades de segurança nacional seriam nomeados.

O AI-4, de 1966, revogou definitivamente a Constituição de 1946 e proclamou outra. O AI-5, de 1968, suspendeu as garantias constitucionais da Constituição que tinham acabado de promulgar. Despachos da Presidência de República passaram a valer mais que leis. Congresso, Assembleias Legislativas e Câmaras dos Vereadores foram fechados por um ano. O presidente podia decretar intervenção de Estados e Municípios. Estavam proibidas atividades e manifestação de natureza política e suspenso o direito de habeas corpus.

Finalmente, parte da sociedade civil que apoiou o Golpe percebeu que militares não sabiam negociar nem ser contrariados. Não têm intimidades com jogo político. Na essência, não praticam a democracia: obedecem sem questionar a um comando, uma hierarquia imposta de cima para baixo.

Foram acusados de comunistas os subversivos dom Elder Câmara, dom Pedro Casaldáliga e dom Paulo Evaristo Arns, que se encontrara em 1964 em Três Rios com tropas do general Olímpio Mourão Filho, deflagrador do Golpe, para oferecer assistência religiosa.

Nos tempos da ditadura, não se discutiam os grandes investimentos. Militares construíram uma usina nuclear com tecnologia obsoleta, numa região de difícil evacuação, e duas estradas paralelas ao Rio Amazonas, a Transamazônica e a Perimetral Norte, que foram tomadas pela floresta anos depois, devastando nações indígenas. Estatizaram companhias telefônicas e de energia. Colaboraram para o desmantelamento da malha ferroviária brasileira.

Editores de livros, como Ênio da Silveira, foram presos. Jornalistas, como toda a redação do Pasquim, entre eles, Paulo Francis, foram presos. Até um escritor no início simpático ao Golpe, como Rubem Fonseca, foi censurado. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e expulsos do Brasil. Raul Seixas foi convidado a se retirar, depois de ironizar o regime com “sou a mosca que pousou na sua sopa”. Chico Buarque se exilou. Teatros foram depredados, atores espancados. Parte da classe teatral, como Zé Celso e Boal, foi embora. Glauber Rocha também se mandou.

O contrabando e o jogo do bicho se associaram a agentes da repressão e se fortaleceram. O crime organizado nasceu. A promiscuidade entre polícia e bandido, tema do filme Lúcio Flávio (Babenco), se consolidou na ditadura, que promoveu e anistiou depois torturadores. O Comando Vermelho surgiu num presídio da ditadura.

Risco zero

Ao terminar em março de 1985, a ditadura deixou uma inflação que virou hiper (a acumulada de 1984 foi de 223,90%), uma moeda desvalorizada (um dólar valia 4.160 cruzeiros), uma dívida externa que nos levou à moratória (FMI suspendeu em fevereiro de 1985 o crédito ao Brasil, que não cumpria as metas depois de sete tentativas). Outra herança: desmantelamento do ensino público.

O Brasil é governado há 20 anos por três subversivos acusados de comunistas pela ditadura: FHC, ex-professor da USP cassado e exilado, Lula, sindicalista cassado e preso, e Dilma, terrorista acusada de liderar uma organização clandestina que praticava a luta armada. Líderes do antigo PCB fundaram o PPS. Todos estão na legalidade e participam da vida democrática, como o PCB e seu racha, o PCdoB, parte da base aliada.

O Brasil talvez tenha sido vítima de uma das maiores farsas da História: nunca correu o risco de virar comunista.

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Marcelo Rubens Paiva é colunista do Estado de S.Paulo