Começam nesta semana as reminiscências em torno da deposição do presidente João Goulart, quando o país entrou numa ditadura em nome da democracia. Ela começou no Dia da Mentira e só acabou 21 anos depois. Estranha efeméride, passaram-se 50 anos e ainda divide opiniões. Em 1949 ninguém discutia o golpe militar que destronou o imperador. Em 1980 ninguém discutia a deposição do presidente Washington Luís. Essa peculiaridade de 1964 fala mais do presente do que do passado.
Há um tesouro à disposição de quem queira conhecer o Brasil daqueles dias. É o livro Cartas do pai – De Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa. Durante 18 anos o pensador católico escreveu milhares de cartas à filha, monja enclausurada num mosteiro beneditino. Em 2003, o Instituto Moreira Salles publicou um magnífico volume de 672 páginas com uma seleta das cartas de 1958 a 1968. É difícil de achar e clama aos céus por uma versão eletrônica.
Vinte anos de atraso
As cartas do “doutor Alceu” são um painel do amor e fé. Entre 1963 e abril de 1964 ele mandou 118 cartas à filha, expondo a alma de um liberal perplexo diante da radicalização política. Alguns exemplos:
>> 11 de julho de 1963: “Este, o ambiente sombrio em que estamos, com o [Carlos] Lacerda [governador do Estado da Guanabara] provocando agitação e insuflando o golpismo legal (deposição do Jango pelo Congresso) e com isso estimulando o golpismo extralegal (militares e esquerda negativa).
>> 18 de setembro: “Se tudo não acabar em ditadura militar, só mesmo porque Deus não quis.”
>> 26 de setembro: “A ‘amarga’ máxima é que a tensão política chega hoje ao auge, no choque entre militares e líderes sindicais, entre os quais o Jango parece que optou (definiu-se, como vivem querendo que o faça, tanto os esquerdistas como os direitistas) e o resultado é que podemos, amanhã ou hoje mesmo, ter um golpe à vista e no duro: ou dos generais ou dos sargentos.”
>> 27 de março: “De repente, bumba! Marinheiros (uns 3.000, dizem) reunidos em um sindicato de metalúrgicos, demissão do ministro da Marinha e do comandante dos Fuzileiros Navais (que dizem ser os homens do Brizola).”
>> 31 de março: Estou sentindo o cheiro de… pólvora e a semelhança com 1937, quando o Getúlio, mestre do Jango, deu o golpe do Estado Novo.(…) O mais grave é que, no momento, introduziu uma cunha entre oficialidade e tropa (soldados ou marinheiros) e isso pode realmente redundar numa revolução de tipo comunista. (…) O momento é de perfeita perplexidade e de vigília de golpe. Mas de onde virá o golpe é que são elas.
>> 1º de abril: “Desgraçadamente rompeu-se de novo a continuidade civil do nosso governo e a solução foi transferida para a área militar. (…) O San Tiago [San Tiago Dantas, ex-ministro das Relações Exteriores] que está muito bem informado, e esteve no Palácio das Laranjeiras com o Jango até de madrugada, me diz que as forças que estão com o governo legal parece que são fortes. (…) Mas o próprio San Tiago confessa que há muitas probabilidades de triunfo do golpe. E será então um triunfo direitista que atrasará por vinte anos o progresso do Brasil’.”
Alceu Amoroso Lima morreu em 1983, sem ter visto o fim de uma ditadura que combateu desde seus primeiros dias.
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Elio Gaspari é jornalista