Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A queda da democracia

Foi um começo de ano marcado por radicalização, agitações e instabilidade, ainda enquanto não se haviam dissipado, no ambiente político conturbado, os efeitos dos conflitos e manifestações de meses antes. Comícios e passeatas atraíam multidões, a favor e contra o governo. Intensificavam-se as articulações para a disputa presidencial que se aproximava. Mas a disputa jamais teria lugar. Quando, em 13 de março de 1964, o Rio parou para um comício em que o presidente João Goulart discursaria, seria difícil imaginar que em semanas o país estaria mergulhado em uma ditadura que, ao longo de 21 anos, cassou políticos, perseguiu adversários, torturou, assassinou e censurou.

Passados 50 anos, o país mergulha fundo na memória do período ditatorial. As publicações sobre a época são abundantes e os debates, intensos e disseminados, num movimento amplificado de análise e interpretação das origens e fatos do tempo da ditadura.

Nos últimos anos, tornou-se comum, entre historiadores, a opção por denominar tanto o golpe de 1964 quanto o regime autoritário que se seguiu como de caráter civil-militar – não só militar. O objetivo é realçar a participação de forças políticas e o apoio de grandes grupos econômicos à conspiração contra Goulart. Para Jorge Ferreira, que em parceria com Angela de Castro Gomes escreveu “1964: O Golpe que Derrubou um Presidente, Pôs Fim ao Regime Democrático e Instituiu uma Ditadura no Brasil” (Civilização Brasileira), “o golpe foi militar, mas teve ampla participação da sociedade: empresários, meios de comunicação, políticos, setores médios. Se o golpe claramente foi uma operação militar, teve sucesso graças ao amplo apoio civil”.

Os governadores de São Paulo, Adhemar de Barros; da Guanabara, Carlos Lacerda; e de Minas Gerais, Magalhães Pinto, colocaram suas polícias em ação. O presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República quando Goulart ainda estava em território brasileiro. O Supremo Tribunal Federal, diz Ferreira, omitiu-se. Meios de comunicação celebraram o golpe, como se viu em dois editoriais do jornal carioca “Correio da Manhã” nos últimos dias da democracia, intitulados “Basta!” e “Fora!” A classe média se manifestou: em São Paulo, a Marcha da Família com Deus, pela Liberdade tomou as ruas em 19 de março, com milhares de participantes execrando um suposto perigo comunista encarnado pelo governo de Goulart. A marcha marcada para o dia 2 de abril no Rio acabou ocorrendo depois do golpe, rebatizada Marcha da Vitória.

“Há revisões em curso sobre o período, que ora convergem, ora divergem”, afirma o historiador Marcos Napolitano, da Universidade de São Paulo (USP), que publicou neste ano “1964: História do Regime Militar Brasileiro” (Contexto). “Se, por um lado, a ideia de ditadura civil-militar procura enfatizar o protagonismo civil no golpe e no regime, evitando o papel da ‘sociedade vítima’ do Estado, por outro, há uma tendência para reduzir a ‘ditadura’ aos anos de violência policial mais direta sobre a oposição política e a classe média.”

“Acho muito importante deixar claro que o golpe de 1964 aconteceu, mas poderia não ter acontecido”, afirma Ferreira. “Vários indivíduos e instituições fizeram escolhas que acreditavam ser controláveis e previsíveis, mas acabaram se revelando completamente incontroláveis.” O historiador se reporta ao fato de que o período democrático vivido pelo Brasil entre 1946 e 1964 costuma ser analisado como próprio de um sistema instável e condenado de antemão ao fracasso. Mas essa avaliação decorre de uma visão em retrospecto, que analisa uma realidade pelo seu fim. Apesar de tentativas de golpe em 1951, 1955 e 1961, Ferreira considera que a democracia brasileira do período pós-Vargas tinha qualidades que ficaram esquecidas.

“Essa primeira experiência brasileira com democracia liberal representativa vinha se firmando a passos largos”, afirma. Ferreira cita os pontos positivos. “Todo o calendário eleitoral foi cumprido. Todas as eleições foram realizadas. Todos os eleitos tomaram posse. Havia grande participação da população nas eleições e existiam partidos com identidade própria, com perfil político-ideológico definido. E mais: fidelização do eleitorado.” Diferentemente do que ocorre hoje, havia fidelidade dos eleitores à linha ideológica dos partidos.

Risco iminente

A historiadora Miriam Dolhnikoff e a socióloga Angela Alonso organizam um seminário, em parceria com o Sesc, que debate as origens e o legado do regime militar. Pesquisadoras do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), elas deitam o olhar sobre o golpe em perspectiva panorâmica, que examina desde o governo de Goulart, iniciado em 1961, até a atualidade, a redemocratização nos anos 1980 e a investigação de violações dos direitos humanos durante o regime autoritário, com a Comissão Nacional da Verdade – com destaque para o fato de que o impacto de um episódio traumático como um golpe de Estado e uma ditadura vai além da política, atingindo manifestações culturais, a produção intelectual e acadêmica e o cotidiano da população. Todos esses são temas de mesas de debate do evento, que começou em São Paulo nesta semana e se encerrará no dia 25, com depoimentos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do sociólogo Francisco de Oliveira e do filósofo José Artur Giannotti.

“O Cebrap [fundado em 1969] é fruto da ditadura: foi criado por professores universitários aposentados compulsoriamente”, diz Miriam. A historiadora avalia que o governo militar provavelmente não impediu a criação do centro porque sua prioridade era afastar os professores dos estudantes, pois poderiam ser inspiradores de contestação e mobilização. “Mas um centro de pesquisa não parecia ser algo muito ameaçador”, conclui. Ainda assim, a primeira sede do instituto de pesquisa, na rua Bahia, em São Paulo, foi alvo de um atentado a bomba praticado por desconhecidos.

Universidades sofreram com aposentadorias forçadas e demissões de professores, em duas ondas, conforme pesquisa do historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A primeira foi em 1964, após a derrubada de Goulart. A segunda foi em 1969, em seguida à promulgação do Ato Institucional 5 (AI-5), em dezembro de 1968. Foram revogados dispositivos que garantiam a estabilidade dos servidores públicos e, com isso, “o governo se armou de um aparato jurídico que permitia demitir e aposentar qualquer professor que quisesse”, diz Motta, que publicou o livro “As Universidades e o Regime Militar” (Zahar).

Mesmo naquele período repressivo, houve tentativas de resistir ou contornar as determinações do governo em diversas universidades, seja negociando para proteger professores que as reitorias consideravam indispensáveis por sua capacidade acadêmica, seja criando institutos fora das universidades, a exemplo do Cebrap. “Houve uma protelação, uma resistência passiva. Alguns atos punitivos acabaram não saindo e os órgãos de repressão ficaram frustrados, porque queriam um expurgo maior”, afirma Motta. A escolha dos professores a serem expurgados estava a cargo de um órgão obscuro, a Comissão de Investigação Sumária do Ministério da Educação e Cultura (Cismec), encabeçada por Jorge Boaventura de Souza e Silva, que, na juventude, havia sido militante integralista.

Em seguida aos expurgos, todo o sistema universitário brasileiro foi reformulado, em parte, seguindo um acordo fechado entre o regime militar, através do então Ministério da Educação e Cultura (MEC), e o governo americano, através da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês). O sistema de pós-graduação brasileiro data desse período e o sistema de créditos também. O acordo MEC-Usaid, porém, não foi aplicado integralmente, por efeito da pressão da opinião pública. “Mesmo em uma ditadura, a opinião pública era capaz de forçar o governo a não renovar um acordo como esse”, comenta Motta. Em 1979, com a Lei de Anistia, os professores expurgados puderam escolher se voltariam ao trabalho ou se contariam o período do expurgo para cálculo de aposentadoria. Motta calcula que cada opção foi escolhida por aproximadamente metade dos demitidos.

A memória da ditadura é cada vez mais presente no debate público brasileiro, sobretudo desde a instituição da Comissão da Verdade, em 2012, que colhe depoimentos de vítimas de tortura e familiares de desaparecidos políticos e deverá produzir um relatório final até 16 de dezembro. Comissões estaduais, municipais ou ligadas a universidades foram instaladas em seguida. Enquanto isso, ativistas em diversas cidades pressionam pela mudança de nomes de ruas e logradouros públicos que homenageiam personagens centrais do período autoritário.

Elementos do dia a dia político brasileiro são frequentemente associados a resquícios do período autoritário, como o poder de legislação nas mãos do Executivo (por meio de medidas provisórias) e a divisão das polícias estaduais entre civil e militar. Para Napolitano, “se existem fantasmas da ditadura, estão concentrados em alguns legados que não conseguimos superar, como na área de segurança pública, na qual impera uma visão militarizada de controle social do crime”.

Argentina e Uruguai, que também passaram por períodos de ditadura, já haviam instalado seus órgãos de apuração e punido responsáveis por atrocidades patrocinadas pelo Estado quando o Brasil criou sua Comissão Nacional da Verdade, em 2011. Para Miriam, a instalação tardia da comissão brasileira resulta do processo de redemocratização do país, obtida graças a um acordo com os militares. “O simples fato de existir a comissão é da maior importância, porque é indispensável que o Estado reconheça os crimes que cometeu”, afirma Angela Alonso.

Há também uma reavaliação da figura de João Goulart, que entrou para a história como um presidente vacilante e influenciável. Sua queda, como é mais comum ouvir, teria resultado da incapacidade de controlar a radicalização da esquerda, comandada por Leonel Brizola, então deputado federal, ou da vacilação em levar adiante tanto o projeto de reforma agrária quanto o plano trienal formulado pelo economista Celso Furtado e pelo ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, que deveria estabilizar a economia e abrir caminho para reformas estruturais. Retratos mais nuançados mostram um Jango conciliador e inclinado a longas negociações, que, no fim, presidiu com dificuldades um país radicalizado e sucumbiu à intransigência de seus opositores.

Napolitano evoca uma frase de Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil de Jango, segundo a qual o presidente caiu mais por suas virtudes do que por seus defeitos. Entre essas virtudes estaria o esforço por mudar a pauta política brasileira, “questionando dois eixos fundamentais da nossa exclusão secular: as restrições à posse de terra e ao direito do voto”. Jango teria sido um presidente que tentava reformar o capitalismo brasileiro, “um projeto muito ambicioso para seu perfil moderado e para a difícil conjuntura econômica e política”, em plena Guerra Fria.

Para Ferreira, autor de uma biografia de Goulart publicada pela editora Civilização Brasileira, Jango cometeu dois grandes erros, que comprometeram seu governo. O primeiro foi o abandono do Plano Trienal, cuja primeira etapa incluía aumento de juros e cortes de subsídios. Na segunda etapa, o crescimento seria retomado com a reforma da posse fundiária. Goulart não resistiu às pressões dos sindicatos e dos empresários, afetados, respectivamente, pelo arrocho salarial e pelo aperto no crédito. O segundo erro ocorreu em 1963, quando os movimentos sindical e estudantil já tomavam as ruas e as forças da direita conspiravam. San Tiago Dantas percebeu os riscos da radicalização e propôs a formação de uma Frente Progressista, reunindo o PSD (Partido Social Democrático, centrista) e a ala moderada do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro, de esquerda), para dar apoio a Jango. Brizola formou a Frente Única de Esquerda, que incluía o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) e o PCB (Partido Comunista Brasileiro). “Ao comparecer ao comício na Central do Brasil, Jango demonstrou que tinha fechado com Brizola. Ele sela publicamente essa aliança”, diz Ferreira. “Essa foi a senha para as direitas partirem para o golpe.”

Goulart poderia ter cumprido seu mandato, não fosse a precipitação de uma série de eventos, que contaram com a participação de lideranças intransigentes à esquerda e à direita, financiamento estrangeiro e escolhas equivocadas. Ele presidiu de fato a partir de janeiro de 1963. Em 1961, quando Jânio Quadros renunciou à Presidência, Goulart, que era vice-presidente e estava em visita oficial à China, pôde assumir com o apoio da Campanha da Legalidade, liderada por seu cunhado, Brizola, que governava o Rio Grande do Sul. Às pressas, o Congresso aprovou emenda constitucional que instituiu o regime parlamentarista, evitando o risco iminente de guerra civil. Em janeiro de 1963, um plebiscito para decidir se prosseguiria o parlamentarismo ou voltaria o presidencialismo terminou com 82% dos votos para a segunda opção.

Tropas em movimento

Anunciado em dezembro de 1962, o Plano Trienal estaria no centro dos debates no Congresso nos meses seguintes. Jango desistiria de medidas de austeridade então propostas, com o que, se atendia a pressões de seus aliados à esquerda, sobretudo os sindicalistas, o fez perder o apoio de parte significativa das lideranças empresariais. Mesmo o governo de John Kennedy era simpático a Goulart, no início.

Uma revolta de sargentos, em setembro de 1963, impedidos pelo Judiciário de se candidatar a cargos legislativos (assim como suboficiais e cabos), colocou a cúpula militar em alerta. O impasse que envolvia os principais partidos da base governista, PTB e PSD, nos debates sobre a proposta de reforma agrária do governo era engrossado pela disputa de influência, na mesma discussão, por militares abaixo do oficialato, sindicalistas e estudantes. Com a aproximação das eleições de 1965, os possíveis candidatos a ocupar a cadeira presidencial – Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto -tinham pouco interesse em fortalecer o presidente.

Na espiral de radicalização, destacava-se Carlos Lacerda, governador da Guanabara (Estado que abarcava o atual município do Rio de Janeiro), personagem de relevo entre os civis que se envolveram na trama anti-Goulart. Lacerda tinha ambições presidenciais, mas passou para a oposição quando o regime militar suspendeu as eleições. Em 1966, com Juscelino e Goulart, formou a chamada Frente Ampla, de oposição ao regime, extinta em abril de 1968 por portaria do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva.

Na esquerda, Brizola, então deputado federal pela Guanabara, tentava capitalizar o prestígio adquirido à frente da Cadeia da Legalidade, movimento de resistência que, como governador do Rio Grande do Sul, organizara para garantir a posse de Jango em 1961 – com o qual contribuiu para que, afinal, se fizesse o plebiscito. Depois do golpe, tentou organizar a resistência armada no Sul, mas Jango preferiu evitar um provável derramamento de sangue. Brizola exilou-se no Uruguai, para onde Goulart já partira. Voltou ao Brasil em 1979, e elegeu-se duas vezes governador do Rio.

Após o Brasil recusar-se a participar de um ataque a Cuba, como queriam os Estados Unidos, durante a chamada crise dos mísseis, em 1962, Washington passou a financiar a oposição a Goulart, por meio de organizações como o Ibade (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Com a chegada de Lyndon Johnson ao poder, passou-se à pura incitação ao golpe, que culminou com o envio de uma força-tarefa naval para as proximidades de Santos, com a missão de garantir sustentação aos insurretos em caso de reação do governo. Mas o general Olímpio Mourão Filho pôs suas tropas em movimento na noite de 31 de março, de Minas para o Rio, antes do combinado com outros líderes da conspiração. Os navios americanos deram meia-volta. O golpe se consumava.

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Diego Viana, para o Valor Econômico