Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mudanças no grito

O grito seria incompreensível hoje, mas mudou para sempre os caminhos da universidade brasileira. Era ouvido há quase 50 anos, pouco depois do golpe de 64, e deu motivo a inúmeras passeatas. O alvo era um acordo entre uma agência do Departamento de Estado americano e o Ministério da Educação brasileiro, chamado MEC-Usaid, que veio ao mundo disfarçado num burocratês anódino, mas incendiou o movimento estudantil por anos, serviu de motivo para jovens quebrarem os vidros do consulado dos EUA, fez ferver o debate nacional. Terminou enterrado sem fanfarras nem discursos, para não dar o gosto da vitória aos estudantes nas ruas em plena ditadura. Alguém ainda se lembra da palavra de ordem “Abaixo MEC-Usaid”?

“Na época, o fato de a ditadura fazer acordo com a agência do governo americano parecia a confirmação da ingerência dos EUA no Brasil”, diz o professor Rodrigo Patto Sá Motta, autor do livro As universidades e o regime militar, uma pesquisa sobre as relações da ditadura com a academia, a ser lançado esta semana pela Zahar.

Era outro mundo, época da guerra fria. No governo Kennedy, os cientistas sociais defendiam que a melhor maneira de espantar as ideias revolucionárias da esquerda era modernizar os países “atrasados”, considerados presas fáceis do comunismo — entre eles, o Brasil pós-golpe. O acordo MEC-Usaid veio embalado nessa política: no papel, o texto do acordo era sem tons ideológicos, propunha reformular e racionalizar a universidade. Até aí, todos de acordo, vivia-se ainda na pré-história nas faculdades do país: o poder estava nas mãos de catedráticos impermeáveis a mudanças, as vagas eram pouquíssimas para o número crescente de jovens nas cidades, só havia dez cursos de pós-graduação, a maioria dos professores não tinha mestrado, o sistema de créditos não existia. Era hora de mudar, claro, mas um grande embate armou-se entre esquerda e direita sobre os rumos a dar à nova universidade. Num lado do ringue, postaram-se o governo militar e os técnicos da Usaid; do outro a UNE e os formuladores das reformas de base do governo João Goulart, expurgados antes de testar as propostas.

Quantidade e qualidade

Entre as duas equipes, visões conflitantes. Os consultores americanos faziam a defesa da universidade paga, mais voltada para o desenvolvimento tecnológico, com autonomia absoluta, à imagem e semelhança dos centros acadêmicos da época nos EUA. A esquerda pedia um ensino público e gratuito, com prioridade para as questões sociais e a pesquisa científica pura, seguindo a tradição francesa dominante na época. “Foi o movimento estudantil que bloqueou parte da implementação do projeto: para os americanos, a universidade paga era o caminho óbvio, e muita gente no Brasil achava que as famílias deviam ajudar a financiar o ensino superior. Mas os militares não puderam pagar o preço político de mudar o modelo”, diz Patto. Alvo maior do antiamericanismo no meio acadêmico, a Usaid fechou seus escritórios no Brasil em 1974, reconhecendo o fracasso do seu projeto de cooperação depois de investir US$ 2 bilhões e mandar 400 funcionários para as cidades brasileiras.

Neste embate, perdemos nós todos. A visão de mundo em preto e branco dessa época já era empobrecedora, mas no Brasil ficou pior. Os militares não tinham projetos para a universidade e concentraram-se na necessidade paranoica de expurgar da academia os adversários da política oficial. O Estado prendeu, aposentou professores considerados ideologicamente suspeitos, torturou e matou intelectuais vistos como perigosos. O anseio de limpeza ideológica levou ao bloqueio da livre circulação de ideias e à instalação de mecanismos para vigiar a comunidade universitária. Assessorias de Segurança e Informação foram criadas nos campi e, junto com outros órgãos de informação, tiraram contratações, concessões de bolsas e autorizações para estágio, relata o livro.

Quantos foram aposentados ou obrigados a se exilar não dá para saber, diz o professor: muitos viajaram porque queriam melhores salários e laboratórios. Falava-se de centenas de pesquisadores vivendo fora do país, metade por motivos políticos. Num momento mais brando, a ditadura reconheceu o erro de expulsar seus talentos e lançou uma operação retorno, convidando alguns moderados a voltar. Era uma boa jogada de marketing, alguns acreditaram e tiveram de fugir de novo pós-AI-5.

Cinquenta anos depois, restam traumas? Patto diz que a universidade está em forte expansão, repetindo a fase inicial da reforma universitária da ditadura em final dos 70. Agora como antes, há uma enorme ênfase na quantidade de cursos, mais do que na qualidade. “A ditadura pretendia formar uma elite, agora há a preocupação de democratizar a universidade”. No início deste ano, o professor viveu uma experiência inusitada: num encontro na Europa, os franceses choravam por falta de dinheiro para pesquisa e diziam-se com inveja dos brasileiros. Deve-se perdoá-los, eles não sabem o que falam.

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Helena Celestino, do Globo