Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Rubens Paiva, o fim do mistério

“Quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar.”

O trecho acima é da abertura da canção Angélica, uma homenagem de Chico Buarque e Miltinho à estilista Zuzu Angel. Zuzu, como se sabe, lutou a vida toda para saber o paradeiro de seu filho, Stuart Angel, preso, torturado e morto na Base Aérea do Galeão, no Rio, em 1971. O corpo nunca foi encontrado e teria sido jogado ao mar, de helicóptero.

No domingo (16/3), o jornal O Globo informa que o ex-deputado Rubens Paiva, também preso, torturado e desaparecido em 1971, mora mesmo na escuridão do mar.

Um coronel reformado, que servia na seção de operações do Centro de Informações do Exército, contou como tudo aconteceu. Ele diz que os militares primeiro enterraram o corpo de Rubens Paiva no Alto da Boa Vista, depois o desenterraram e enterraram de novo nas areias do Recreio dos Bandeirantes, que na época era uma região quase deserta. Dois anos depois, em 1973, resolveram remover o cadáver, porque alguns banhistas vinham encontrando ossadas na praia: ali era provavelmente um local utilizado por grupos de extermínio para desovarem seus mortos.

O coronel só aceitou falar se não tivesse a identidade revelada. Ele diz que foi encarregado de comandar o serviço e afirma que os restos mortais de Rubens Paiva foram transportados até o Iate Clube do Rio de Janeiro, na Urca, e lançados ao mar.

Essas revelações ocorrem num momento particularmente importante: é o momento em que o grupo Justiça em Transição, do Ministério Público Federal, está para denunciar quatro militares envolvidos na morte de Rubens Paiva. Parte do mistério já tinha sido desfeito com o depoimento de um oficial da reserva, que confirmou a montagem de uma farsa para simular a fuga do ex-deputado. Outra testemunha garantiu ter visto Rubens Paiva ser torturado nas dependências do DOI-Codi. A informação sobre o desaparecimento do corpo era a peça que faltava para acabar com o mistério.

O Globo faz autocrítica na prática

A reportagem sobre o caso Rubens Paiva ocupa duas das sete páginas que o jornal dedicou na edição de domingo a fatos que marcaram os 50 anos do golpe militar. O Globo já vinha publicando um bom material sobre o tema desde fevereiro, e anunciou que agora vai ampliar essa cobertura, com mais reportagens especiais ao longo do mês de março. O site do jornal, aliás, reúne um dossiê com reportagens publicadas desde março de 2012, sobre alguns dos episódios mais relevantes do tempo da ditadura (ver aqui).

Em agosto do ano passado, o jornal reconheceu que errou ao apoiar o golpe militar. Foi de fato uma atitude inédita, embora tardia e totalmente insuficiente. Primeiro, porque o jornal não apenas apoiou o golpe: isso, todos fizeram, à exceção da Última Hora, que era fiel ao governo deposto. O Globo não só apoiou o golpe como manteve esse apoio até o fim, a ponto de evitar ao máximo a cobertura da campanha das Diretas, em 1984. Mas o mea culpa foi insuficiente e envergonhado porque pisava em ovos e tentava afirmar o permanente respeito do jornal aos princípios democráticos, mesmo quando esses princípios foram violentamente agredidos desde que os militares tomaram o poder.

Mas muito mais importante que qualquer mea culpa fajuto é a decisão de investigar os crimes da ditadura. Isso já ocorre há muito tempo: basta lembrar que, em 1999, O Globo ganhou o Prêmio Esso de Reportagem com uma série que trazia novas informações sobre o caso Riocentro. E não é só isso: a atitude do jornal em relação a esse tema é um alerta aos mais afoitos, que se consideram muito críticos e gostam de rejeitar automaticamente tudo o que vem da grande imprensa, e em particular dos veículos das Organizações Globo.

No caso da cobertura das UPPs, por exemplo, O Globo se presta ao lamentável papel de porta-voz das autoridades. Mas, quando trata dos crimes da ditadura, o jornal tem produzido reportagens exemplares e de grande relevância. No primeiro caso, faz a propaganda mais rasteira. No outro, faz jornalismo da melhor qualidade.

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Vítimas da Casa da Morte foram jogadas dentro de rio, diz coronel — Chico Otávio [O Globo, 21/3/2014]

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)